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“Cidade produto”: Recife não tem o que comemorar no aniversário do Estatuto da Cidade

Documento evidencia aspectos habitacionais que ainda não são garantidos na capital pernambucana

Espelho de várias cidades dentro do Recife. Foto: Alcione Ferreira/Cendhec

“Para mim, vai além de um aglomerado de pessoas e casas. É uma parte da nossa história”. Assim descreve Luan Rhikelmy, quando questionado sobre o conceito de cidade. Morador há 13 anos do bairro Vasco da Gama, zona norte do Recife, o jovem destaca que o local oferece lazer, cultura e saúde, embora ainda apresente insuficiências sociais.

“Eu aproveitei cada momento no bairro, mas eu melhoraria a questão do saneamento básico, porque nem todas as casas possuem. Recife é marcado por lutas por direitos e igualdades. Mas, infelizmente, muitos moradores têm seus direitos violados todos os dias”, conta Luan, que é monitor da formação política do Programa Direito à Cidade, do Cendhec.

Não deveria ser assim. Há 22 anos, foi aprovada a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais para concretização de uma política urbana. Isto é, melhorias cotidianas deveriam ser aplicadas para planejar uma cidade segura e adepta às necessidades dos habitantes.

Ainda que não seja o retrato atual da capital pernambucana, a lei tornou-se uma conquista, uma vez que estabelece medidas que visam ações conjuntas para a cidade. Por isso, nessa perspectiva, foi criado o Dia do Estatuto da Cidade, regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que tratam da política urbana.

Luís Emmanuel, advogado e coordenador do Programa Direito à Cidade do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec), explica a finalidade do documento. “É um instrumento muito importante que objetiva regulamentar a propriedade de uso do solo urbano, numa perspectiva da coletividade do bem geral para todos os cidadãos e cidadãs. E fortalece, também, a ideia prioritária em relação à moradia adequada: não é apenas uma construção, mas, sim, um lugar que possua ventilação, acesso a água potável e ao saneamento, e que esteja perto de escolas e centros de saúde”, elucida.

“O Direito à Cidade é difuso, coletivo e pertencente a todos os habitantes do meio urbano e rural. Mas trazendo para a realidade atual, o Recife ainda não conseguiu garantir as questões propostas. O que temos visto é que o poder público tem sido o maior violador desse direito”, atesta Cristinalva Lemos, assistente social do Cendhec.

Consideradas áreas de riscos, morros e encostas foram interditadas, em 2022. Foto: Arquivo Cendhec

Apesar da regulamentação jurídica, o cenário que presenciamos ainda não é o ideal. As pessoas, vítimas da ausência de um projeto habitacional de qualidade, são empurradas a ocupar espaços inseguros e que ferem a dignidade humana. O levantamento mais recente do Recife sobre a falta de moradia é do ano de 2018, localizado no Plano Local de Habitação de Interesse Social (PHLIS). As informações desatualizadas refletem a falta de interesse público em debater e concretizar medidas. Em maio de 2022, o portal G1 revelou, segundo dados oficiais da prefeitura, que a capital pernambucana tem um déficit de 71.160 moradias.

“Existe a dificuldade para que essa ferramenta seja realmente inserida na vida das pessoas. O que vemos no Recife é justamente a inversão desse objetivo. Os grandes projetos que movem a cidade vão contra ao Estatuto da Cidade, porque não estão voltados para a coletividade. A perspectiva é de uma cidade produto, vendida a todo instante para quem tem mais dinheiro. Com isso, as pessoas que têm condição de vulnerabilidade social são descartadas da cidade”, evidencia Luís Emmanuel.

O Estatuto da Cidade pressupõe, ainda, que toda a população usufrua do ambiente em que está inserida. Todavia, a paisagem do cotidiano difere do que seria a melhor conjuntura, como aponta Lorena Melo, assistente social do Cendhec. “Seu objetivo é de regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, além de debater o equilíbrio ambiental. Mas no campo da implementação da lei, há muito o que se fazer para alcançar seu objetivo, pois a disputa da terra é, muitas vezes, desigual e consequentemente injusta”, diz. “A visão de propriedade, no âmbito jurídico e do mercado, é pautada como algo próprio de alguém. Com isso, agrega uma série de requisições, constrangimentos e violações de direitos, como por exemplo, o processo de regularização fundiária para pessoas em situação e vulnerabilidade nas Comunidades de Interesse Social (CIS) e nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)”, complementa a profissional.

Nesses locais, o esperado seria que o Estado agisse para proteger a população vulnerável, no entanto, o que é presenciado são ameaças e remoções forçadas. Sem alternativa, pessoas buscam prédios ou casas vazias para morar de forma improvisada, enquanto aguardam as promessas de construção de habitacionais – que, também, não sanam todas as problemáticas que circundam o assunto.

Na manhã dessa sexta-feira, 07, parte de um prédio desabou no bairro do Janga, em Paulista. De acordo com informações da prefeitura, o imóvel, que fazia parte do Conjunto Beira-Mar, estava interditado desde 2010. Porém, sem outras possibilidades de moradia, foi invadido por outras famílias, dois anos depois. No momento do desmoronamento, adultos e crianças estavam no local e, lamentavelmente, acabaram soterrados. Sete pessoas se feriram e 14 foram encontradas sem vida.

“Ainda no dia 06 de julho, a Caixa Seguradora, uma das empresas responsáveis pelo prédio, realizou uma vistoria em todo o conjunto habitacional, e constatou o risco de desabamento. […] Ninguém escolhe morar em área de risco, esta é a realidade que nos foi incumbida. Não soterrem nossas histórias”, diz um trecho da nota publicada pelo Cendhec. Acesse na íntegra aqui.

Rastros de destruição pela falta de planejamento e infraestrutura afetam, duramente, a população. Foto: Arquivo Cendhec

“Ainda não alcançamos um plano de desenvolvimento das cidades, ou seja, infraestrutura que propicie segurança, acessos a serviços, mobilidade e dignidade às pessoas. Esta lacuna se revela, principalmente, nas áreas de risco na cidade, às quais, em contexto de mudanças climáticas, a população negra e pobre é a mais impactada com a ausência do poder público”, relata Lorena Melo.

“A venda de espaços da cidade, que poderiam ser utilizados para construção de novas moradias, acentua o déficit e não trata das questões trazidas pelo Estatuto. As pessoas não têm o direito de desfrutar da cidade de forma democrática e igualitária”, estabelece Cristinalva Lemos.

À vista dessa realidade, o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social contribui, há mais de três décadas, na luta por moradias dignas, seguras e habitáveis; aspirando, enfim, que toda a população possua uma casa, um lar, para chamar de seu.

“Vivido, cotidianamente, como uma arena de disputas, o Cendhec, por meio do Programa Direito à Cidade, busca tornar efetivo o Estatuto da Cidade, junto às organizações comunitárias, para que as pessoas possam ter o direito de morar dignamente em seus territórios”, finaliza Lorena Melo.

Texto: Maria Clara Monteiro/Cendhec

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