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Pandemia desafia enfrentamento das desigualdades em territórios segregados

Cendhec articula necessária proteção e direito à cidade para quem mais precisa a partir do papel e centralidade dos Direitos Humanos

Ilustrações: João Lin

Por Antônio Celestino

Colaboração de: Michela Albuquerque

O Plano de Resposta da ONU-HABITAT ao Covid-19 (1) aponta que a Pandemia atinge mais de 1,430 cidades em 210 países, sendo 95% dos casos nos centros urbanos. O documento afirma que o impacto da crise será mais devastador nas áreas pobres e adensadas, em especial para as favelas e assentamentos informais, consequência de um Século XXI em que uma maioria precarizada conhece do capital globalizado apenas seus efeitos perniciosos: são 2,4 bilhões de pessoas com limitações de acesso à água e saneamento e 1 bilhão de pessoas reduzidas à vida em assentamentos adensados e de conformação inadequada.

Desde o dia 14 de março, o Estado de Pernambuco e a cidade do Recife decretaram medidas temporárias para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, conforme previsto na Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. No dia 17 de março, outro decreto estadual restringe ainda mais a circulação e aglomeração de pessoas. Nesse dia, o Cendhec determina o trabalho da equipe de forma remota, através de home oficce a partir do dia 18 de março, acompanhando o mesmo dia da suspensão de aulas em todas as escolas e universidades – das redes municipais, estaduais e federal de ensino no Estado.

Passados seis meses e ainda imersos na pandemia, embora com diversas medidas de flexibilização e convivência com o vírus, o índice de letalidade da Covid-19 no Brasil já é 5 vezes maior para a população negra (2). As condições socioeconômicas, de habitação e de acesso à infraestrutura precárias ampliam a vulnerabilidade socioespacial de contaminação – o que demandaria medidas específicas para as diferentes porções do território (3). As mais de 120 mil mortes decorrentes do coronavírus marcam as entranhas da desigualdade histórica que produziu as cidades brasileiras. A necropolítica(4), entendida como o poder sobre a vida e a morte dos corpos negros, parece ter encontrado comprovação cabalística na condução política da pandemia pelo executivo federal.

Na América Latina o desafio no enfrentamento à Covid-19 inclui o desigual acesso ao serviço de saúde – além do severo impacto econômico derivado do declínio do comércio, indústria e turismo, resultando num aumento do desemprego e redução do salário. O isolamento tem afetado a economia em escala global. Essa situação aguçou ainda mais a crise econômica que vivenciamos no mundo e no Brasil. Os(as) trabalhadores(as) informais têm sido os(as) mais afetados(as) na geração de renda para sustento da família, e o número de desemprego tem aumentado ainda mais nesse período de pandemia, no qual postos de trabalho têm sido fechados, e/ou trabalhadores(as) têm seus salários reduzidos.

A partir dessa perspectiva a Declaração nº 1 da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH expressa que as medidas de enfrentamento e contenção à pandemia devem ter por centralidade os direitos humanos, em especial, os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais dos mais vulneráveis.

A pandemia mundial traz uma série de questionamentos sobre os caminhos do futuro da humanidade, dos meios de produção e do convívio social. Porém, explicita as desigualdades históricas no país, na medida em que variados grupos sociais não são atingidos na mesma intensidade. A falta de unidade política na condução desse processo é reflexo ainda da polaridade eleitoral de 2018 – contínua e permanente no Brasil. E, fundamentalmente, do abismo histórico entre classe social, raça/etnia e gênero no país. Nesse sentido, para além de incompetência técnica e de gestão, o Brasil se encontra em meio à pandemia mundial somada à política genocida e de extermínio da população periférica, pobre, negra, carcerária, de mulheres, indígenas e de todos(as) que façam lembrar a existência dos Direitos Humanos no Brasil.

Diante desse cenário nacional, ainda foi possível o aumento do valor do auxílio financeiro emergencial para R$ 600,00 (seiscentos reais) e R$ 1.200,00 (mãe solo) – a partir da pressão da população junto aos movimentos sociais e partidos políticos do Brasil. Infelizmente, nesse quesito, há milhões (5) de pessoas que ainda não conseguem acessar o auxílio e a ausência de vontade política, por parte do governo Federal, para solucionar os problemas, é o maior entrave para resolução.

Mas, sem dúvida, o protagonismo em relação ao enfrentamento da Pandemia, da política nacional genocida, os cuidados com as populações – comunidades periféricas; população negra; mulheres; crianças e adolescente; pessoas com deficiência; população de rua; encarcerados(as); comunidades tradicionais(6) – historicamente invisibilizadas no Brasil, têm sido fundamentalmente dos movimentos sociais, organizações não governamentais, apoiadores, partidos de esquerda no Brasil e acadêmicos(as)/pesquisadores(as) comprometidos(as).

A Região Metropolitana do Recife desponta, lamentavelmente, com o maior Índice de Vulnerabilidade Social – IVS (0,331) dentre as RMR’s analisadas em recente estudo do IPEA. O índice está diretamente relacionado à probabilidade de contágio (7). Dentre as duas cidades mais desiguais de todo o país (8), Recife acentua seu déficit habitacional de aproximadamente 300.000 pessoas (9).

Do ponto de vista dos múltiplos territórios que compõem um centro urbano como Recife, atuar a partir da compreensão de que moradia é questão de saúde, e da necessária proteção e garantia de direitos para quem mais precisa tornaram-se imperativos. O isolamento social, portanto, não colocou em cheque apenas o ir e vir – revelou a necessidade de um exercício coletivo para repensar e remodelar processos de ocupar e construir, viver e morar, circular e desfrutar da cidade. Ter, efetivamente, direito a ela.

No Cendhec, viu-se a necessidade de se adaptar (a partir das organizações pessoais, familiares e profissionais da equipe) para dar continuidade ao trabalho institucional de Defesa dos Direitos Humanos e da população nas comunidades com as quais atua.

Assim, em todas as frentes da organização, buscou-se concretizar, tanto atividades que espelhassem as ações inicialmente planejadas, necessariamente adequadas ao novo contexto, como responder às emergências que a pandemia e o isolamento social fizeram ver em dimensão ampliada.

Do lugar do Programa Direito à Cidade as atividades caminharam em conjunto às ações e atividades institucionais, no sentido de enfrentar consequências vitais, para imensa parcela da população, destacando-se no período:

  1. Elaboração de Cartilha sobre o Covid-19 com informações sobre auxílio emergencial, cuidados com a higiene e dicas para pequenos empreendedores, bem como a distribuição de panfleto online com os principais pontos sobre o auxílio emergencial para as comunidades e territórios;
  2. Plantão jurídico para orientar sobre o auxílio emergencial, suspensão do contrato de trabalho e redução de jornada, semanalmente (10), por telefone e whatsapp;
  3. Mobilização junto às comunidades e território com fins de promoção da Campanha da Vaquinha (11) online da Articulação Recife de Luta;
  4. Formação continuada em Direito à Cidade com jovens das Comunidades de Mustardinha, Nova descoberta e Roda de Fogo/Torrões no contexto de pandemia para avaliação da situação das comunidades e do contexto familiar dos mesmos, bem como adaptação do Curso de formação em ciclos de formação à distância;
  5. Articulação Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – Renap, com a pauta da suspensão dos despejos individuais e coletivos no Estado de Pernambuco, resultando na expedição da Recomendação nº 2 de 2020 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco – TJPE que remenda as Magistradas e Magistrados pernambucanos que se abstenha de promover despejos, seja de natureza individual ou coletivas, no período da Emergência de Saúde da Covid-19;
  6. Apresentação de Relatório da inobservância dos diagnósticos dos Instrumentos Urbanísticos do Plano Diretor, com a Articulação Recife de Luta, em face do Termo de Referência Contratual no processo de impugnação do Projeto de Lei do Plano Diretor junto ao Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco;
  7. Articulação com atores estratégicos, com fins de pressão política para a decretação do Lockdown pelos Poderes Estaduais e Municipais da Região Metropolitana do Recife – RMR;
  8. Apresentação, em parceria com a Articulação Justiça e Direitos Humanos JusDh, Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania – ADJC e Associação Brasileira de Jurista pela Democracia, de Notícia Crime (STF) em face do Presidente da República, pelos atos atentatórios à Segurança Nacional, a Saúde Pública e ao Estado Democrático de Direito, perpetrados no dia 19 de abril de 2020;
  9. Entrega de kits de segurança alimentar e higiene para áreas de ocupação da comunidade da Mustardinha;
  10. Relatório de Monitoramento da Covid-19 Fórum Nacional da Reforma Urbana – FNRU;
  11. Articulação nacional da Campanha Despejo Zero (12), em defesa da vida no campo e na cidade, uma ação nacional, com apoio internacional, que visa a suspensão dos despejos ou das remoções, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades, urbanas ou rurais. É uma campanha permanente, de construção coletiva e aberta a toda sociedade, sobretudo aos movimentos sociais e populares comprometidos com a defesa dos direitos humanos, direito à cidade e aos territórios;
  12. Criação, em articulação com 38 organizações da sociedade civil, movimentos, coletivas e coletivos, do Observatório Popular de Direitos Humanos de Pernambuco – OPDH, que terá atuação permanente, tendo como objetivo a proteção e defesa das liberdades fundamentais e direitos humanos, em especial do direito à saúde, com fins de monitorar e acompanhar o impacto da crise em populações e grupos em situação de vulnerabilidade, de expressividade negra e pobre, no contexto da crise da pandemia do Coronavírus (COVID-19) no Estado de Pernambuco. O OPDH, dentre suas atividades, tem marcado pela expressividade na denúncia (13) da sobreposição em eixos das violações aos direitos humanos nas comunidades e territórios pernambucanos.

NOTAS

1<< https://unhabitat.org/sites/default/files/2020/04/final_un-habitat_covid-19_response_plan.pdf >> Acesso em 04 de maio de 2020.

2<< https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/ >> Acesso em 09 de maio de 2020.

3 Nota Técnica IPEA nº 15. Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – DIRUR. APONTAMENTOS SOBRE A DIMENSÃO TERRITORIAL DA PANDEMIA DA COVID-19 E OS FATORES QUE CONTRIBUEM PARA AUMENTAR A VULNERABILIDADE SOCIOESPACIAL NAS UNIDADES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE ÁREAS METROPOLITANAS BRASILEIRAS. Abril de 2020.

4 Mbembe, Achile. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016.

5 <<http://portal.dataprev.gov.br/auxilio-emergencial-dataprev-libera-mais-354-milhoes-de-solicitacoes>> Acesso em Julho 2020.

6 Quilombolas, indígenas, religião matriz africana, ciganas, ribeirinhas, entre outras.

7 Nota Técnica IPEA nº 15. Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – DIRUR. APONTAMENTOS SOBRE A DIMENSÃO TERRITORIAL DA PANDEMIA DA COVID-19 E OS FATORES QUE CONTRIBUEM PARA AUMENTAR A VULNERABILIDADE SOCIOESPACIAL NAS UNIDADES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE ÁREAS METROPOLITANAS BRASILEIRAS. Abril de 2020.

8 <<https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/07/07/desigualdade-social-faz-com-que-o-recife-tenha-um-dos-maiores-indices-de-mortes-por-coronavirus-diz-estudo.ghtml>> Acesso Julho de 2020.

9<<https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2019/09/23/deficit-habitacional-no-recife-chega-a-71-mil-moradias-176663 >> Julho de 2020.

10 Os Plantões acontecem por meio de contato telefônico e/ou WhatsApp dois dias na semana, às terças feiras das 8:00 às 12:00 horas e às sextas feiras das 8:00 às 12: 00 horas. Continuamos a disposição da população para orientações e possíveis encaminhamentos das questões referentes ao Auxílio Emergencial como analise, negação e bloqueio por parte do governo Federal, de forma gratuita pelos telefones (WhatsApp): 81 9.9746-0037 / 81 9.9928-5168.

11 Ferramenta digital online de arrecadação de dinheiro.

12 Formulário de adesão à Campanha Despejo Zero https://forms.gle/EzfLmVkSB3z6B3Km6

13 DENUNCIE QUALQUER VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS EM SUA COMUNIDADE. CANAIS DE DENUNCIA: https://observatoriodhpe.wordpress.com/ ou observatoriodhpe@gmail.com

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