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O impacto de sentir na pele a dor do racismo

Desde quando tomei conhecimento da morte do menino Miguel Otávio fiquei muito impactada, sem conseguir reagir durante alguns dias. Ao assistir a entrevista de sua mãe Mirtes e de sua avó, não aguentei tamanho sofrimento. Passei muitos dias mal, acompanhando toda a narrativa, que chega na morte de uma criança com apenas cinco anos de idade.

Fiquei pensando como uma criança pôde ter a sua vida interrompida precocemente daquela forma, mais trágica impossível. Morto por uma estrutura racista e classista, que nos leva ao período da escravidão, ainda tão presente nessa sociedade. Difícil demais compreender por que aquela mulher preta, que já sofre com as desigualdades sociais assim como muitas de nós – mulheres pretas – desse país, tinha que carregar para o resto de sua vida a dor de perder um filho.

Em sua entrevista, a avó dizia “só precisava de um pouquinho de paciência apenas, e ele estaria aqui conosco”. A avó, também vítima dessa estrutura, não entendia até aquele momento que a questão que levou a morte do seu neto era muito mais do que paciência. Era simplesmente a patroa entender que aquele menino não é diferente do seu próprio filho/a. Ela jamais colocaria a vida do/a filho/a em perigo como colocou a de Miguel. Naquele momento que vejo a cena do elevador, só penso que para ela a vida de uma criança negra não tem valor ou, no mínimo, tem menos valor.

A morte de Miguel, além de me deixar chocada e revoltada, trouxe à memória situações muito ruins, do tempo em que minha mãe – empregada doméstica – precisava me levar com ela para o trabalho, para que eu não ficasse em casa, vulnerável à violência doméstica, pela qual eu, minha irmã e meu irmão éramos expostos. Tenho consciência que ela só quis me proteger, mas ela não sabe o que a filha dela, hoje adulta, ainda carrega na memória desse período. Situações evidentes do racismo que, na época, nem sabíamos o que era. Eu apenas sabia que a nossa situação era muito diferente, como se fôssemos inferiores até.

Anos se passaram e, quando me descobri negra, passei a enxergar o racismo. Muitas lembranças vieram à tona e com elas muito sofrimento e dor. Uma vez, quando eu estava com a filha da patroa, e eu disse que não queria mais brincar, essa menina jogou um brinquedo pela janela do apartamento e disse à sua mãe que eu quem havia jogado. Não me lembro quantos eram os andares, mas lembro que era bem alto, que minha mãe não estava na hora, e que a patroa me fez descer, sozinha, para buscar. Mesmo eu dizendo que tinha medo de usar elevador sozinha, fui obrigada a ir. Me lembro de sair para procurar o brinquedo chorando muito. Lembro que fui parar em outros apartamentos. Lembro que nenhuma daquelas pessoas se preocupou comigo. Consegui pegar o brinquedo e, ainda com medo, resolvi subir pelas escadas.

Com o tempo, entendi que ser pobre nos colocava numa situação de desigualdade, por tudo que não tivemos direito de acesso. Privações que, sobretudo minha mãe, esteve sempre submetida. Ela e uma geração de mulheres pretas, vivendo em um tempo que era ainda pior. Percebi minha mãe naquela relação com a patroa e o patrão, onde ela os achava maravilhosos/as pelo simples fato de estar empregada (o mais importante para ela, uma vez que tinha que sustentar três filhos. Quase um favor). E hoje tenho consciência que só estar empregada não garantia à ela os seus direitos.

Minha mãe chegava a dizer que tinha patroas maravilhosas e tive que fazer, aos poucos com ela, algumas reflexões, para que entendesse qual a situação que ela estava naquela relação:

Quando a patroa não permitia que as empregadas se sentassem à mesa. (Lembro que, por muitas vezes, almoçamos no chão); Quando a patroa dizia que nem ela – minha mãe – e nem eu, poderíamos circular na casa quando estivesse com visitas; Quando a patroa afirmava que ela só poderia ir para casa quando fizesse a janta, mesmo que o horário dela já tivesse ultrapassado as oito horas trabalhadas; Quando a patroa informou que ela “tinha” um quarto para descansar. Um espaço bem pequeno e quente, onde o sol batia a manhã e a tarde inteiras, e que por isso não era possível ocupar durante o dia. Quando ela precisando ficar na área de serviço para descansar um pouco; Quando a patroa pedia para ela lavar, passar, cozinhar, cuidar das crianças e arrumar a casa, tudo pelo mesmo valor. (Lembro da minha mãe chegar em casa muitas vezes tarde da noite. Lembro de mim e meus irmãos aguardando ela para comer);

Lembro que quando minha mãe precisou fazer uma cirurgia (e, infelizmente, pegou uma infecção no hospital, tardando seu retorno ao trabalho), pediu às suas duas patroas para ajudar no tempo que precisava se recuperar e – lembro como se fosse hoje – da minha irmã mais velha chegando em casa com apenas uma única sacola, que mal dava para alimentar minha mãe e seus filhos por dois dias. Eu tinha apenas nove anos de idade e lembro muito bem dessa situação. Naquele momento, a única coisa que fiz, além de chorar ao ver o desespero da minha mãe, foi pedir à Deus para crescer rápido para poder trabalhar, o que comecei a fazer aos 11 anos, de forma informal, escondida da minha mãe;

Ter vivido tudo isso sem dúvida tem um impacto na minha vida e na vida da minha família. Carregamos, até hoje, as cicatrizes marcadas pelas desigualdades raciais e sociais. Mas olhar para tudo isso e poder reagir é o que me anima e me faz acreditar que a minha vida importa. Isso parece óbvio, mas o racismo é tão cruel que nos faz acreditar que as nossas vidas tem menos valor que a vida de uma pessoa branca. Durante muito tempo, pensei assim. Mas hoje não mais. Hoje sei que tenho muito valor e sei que minha vida não tem preço.

Teve um período da minha vida que imaginei, de forma muito ingênua, que um dia poderia estar livre do racismo. Pensei que isso fosse possível, mas só foi sair da minha bolha, meu gueto, da minha periferia, para entender o quanto o racismo ainda se amplia. Foi no trabalho, na universidade, nas relações entre pessoas não negras, que percebi que a minha luta estava apenas começando. Durante a minha vida, descobri também que não me bastava ter curso superior, ter carro, casa própria, para ser considerada como igual, já que a minha cor de pele, meus traços negróides e meu cabelo crespo permaneciam os mesmos. Pra isso, precisei estudar um pouco mais e entender que o racismo é estrutural, que existe um desenho de poder que nasce para ser excludente e determina quem tem o direito de viver e quem não tem, quem deve viver e quem deve morrer. Os privilégios da população branca e a ausência de privilégios da população negra, nos coloca – negros e negras – numa situação de muitas violências.

Pensei que quanto mais velha, menos medo do racismo eu teria, porque me imaginava muito forte. Mas, como mãe de duas crianças negras, o medo só aumenta. Tenho que conversar sobre o racismo, principalmente para o meu filho Pedro, que tem nove anos. Debater sobre o que é ser negro ou negra numa sociedade racista. É muito duro ter que dizer ao meu filho que ele pode ser discriminado pela sua cor de pele. Ele sempre diz “Mamãe, por que têm pessoas que se acham melhor que nós?”. E eu preciso falar sobre uma mentalidade colonial que ainda é muito presente, mesmo vivendo no século XXI. Minha filha, Eduarda, tem apenas dois anos de idade, mas fico imaginando o que posso fazer para que ela, como menina, não esteja em uma situação de violência marcada pelo machismo, mais uma questão que a torna ainda mais vulnerável. Crio meu filho e minha filha para entender o racismo, mas também para saber o que é amor, afeto, solidariedade, irmandade…

Concluo dizendo que o racismo mexe de verdade com a nossa autoestima, mas precisamos ser fortes o suficiente para vencer o conservadorismo da sociedade brasileira, que mata de forma genocida a população negra.

Sei que sou uma sobrevivente, assim como minha mãe e minhas irmãs, porque, como mulheres pretas, a luta ainda é bem maior.

VIDAS PRETAS IMPORTAM E MUITO!

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