Texto: Luana Farias / Fotos: Alcione Ferreira
“No meu aniversário eu comemoro o mês todinho”
Quanta festa carrega consigo quem se dedica um mês para celebrar a vida? Durante uma caminhada pelas ruas da Comunidade do Bode, conversamos com Paula e testemunhamos o seu festejo no riso, nos olhos e na palavra, é assim que o nutre e compartilha. Consciente das curvas acentuadas de sua trajetória, celebrar-se é a resposta mais acertada de quem, finalmente, pode afirmar e exercer o direito de sorrir alto e comemorar como merece.
Mãe, candomblecista e estudante, Paula Ferreira, 44, é moradora da Comunidade do Bode e vive no Pina há mais de vinte anos. É aluna do curso Libélulas: mulheres protagonistas pela justiça climática, realizado pelo Cendhec. No mês em que completa mais uma volta em torno do sol, abrimos, com as suas narrativas, a série especial “Mulheres-Libélulas”, para a seção Histórias de Vida.
No Julho das Pretas, mês alusivo ao Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina Americana e Caribenha, esta série homenageia participantes do curso oferecido a moradoras do Bode e de comunidades do Ibura de Baixo para debater justiça climática com recortes de gênero, raça e classe.
“Mãe de três pedras preciosas”, assim intitula-se orgulhosa em ver o crescimento dos filhos, que encontram na educação a possibilidade de transformação da realidade. Preciosidades lapidadas, Paula vê no caminhar de Erivannia, 24, Doralicy, 22, e George, 17, os frutos da dedicação e a esperança de vidas mais seguras e dignas.
“Eu tive que abrir mão de muitas coisas, uma delas foi parar meus estudos pra poder trabalhar e segurar as pontas em casa”, relata. Mãe solo, aos 22 anos, sem sequer ter o direito a alternativas, foi evadida da escola para trabalhar e, assim, garantir o essencial no pleno desenvolvimento dos filhos.
Vivenciou a mesma realidade que tantas outras, em sua maioria negras e periféricas, que enfrentam um dos trabalhos mais desvalorizados na sociedade: a maternidade solo. Conforme aponta o Portal da Transparência, do Registro Civil, no Brasil, dos nascidos entre janeiro e julho de 2025, mais de 65 mil têm pais ausentes. 90% das mulheres que se tornaram mães solo entre 2012 e 2022 são negras, segundo pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas.
Com a recusa dos parceiros da responsabilidade com a paternidade (manifestação da cultura patriarcal e machista no país), a sobrecarga das mulheres é consequência garantida num cenário que aglutina tantas violações de direitos. Também são elas as primeiras e principais afetadas por negligências na saúde, infraestrutura, educação e segurança nos bairros periféricos.
Paula conheceu o Cendhec através de George, filho mais novo que, durante dez anos, foi impactado por oficinas da organização, realizadas em parceria com instituições comunitárias do Pina. Hoje, o menino é monitor no Projeto Teia de Proteção, do Programa Direitos de Crianças e Adolescentes, e segue reverberando os aprendizados no campo dos direitos humanos e das reflexões sobre seu território.
“O curso Libélulas pra mim é minha segunda família”
Convidada para a formação, também motivou a esposa, Lady Helena, a fazer parte. Através das aulas, juntas e em comunidade, debatem sobre justiça climática, enquanto acessam, redescobrem e identificam saberes do bairro.
Antes de fixar os pés no Pina, Paula morou em Casa Amarela. Lá, aos 13 anos, vivenciou os primeiros impactos de tragédias anunciadas durante o período de fortes chuvas no Recife, com a queda de uma barreira contra sua casa. O relato foi compartilhado nas aulas sobre injustiça socioambiental.
Além das aulas de letramento climático, destaca dentre os debates mais marcantes a discussão sobre empoderamento feminino e violência de gênero. Denuncia também a discriminação que enfrenta ao lado de sua esposa: “Eu moro com minha mulher há sete anos, mas a gente ainda sofre preconceito, tem muito homem machista”. Enraizado nos sistemas estruturais do país, o machismo e o conservadorismo são bases da LGBTfobia.
“O que a gente gostaria mesmo era que mudasse esse quadro. É muito duro”. É em roda, com as mulheres, vizinhas e colegas do curso, que descobre espaço para identificar as injustiças, denunciar e se posicionar, encontrando amparo e direcionamento.
“Eu me sinto muito honrada por ter sido uma das primeiras [a entrar no curso] e também conseguir influenciar algumas mães e meninas. Ali é nosso momento. A gente brinca, se distrai, conversa. Coisa que não tem na rotina da gente. A rotina é levantar de manhã, trabalhar, cuidar de menino, cuidar de casa, cuidar do marido”.
Atualmente, a estudante do Libélulas é empregada doméstica e lembra como o cuidado e o trabalho sempre fizeram parte de sua vida. “Criei meus filhos sozinha, sempre fui mãe e pai. Guerreira, batalhadora, parei 20 anos da minha vida pra criar eles, parei de viver, de sair, de me divertir”. Ela relata que tentou voltar a estudar duas vezes, mas foi levada a desistir em ambas: no início da terceira gravidez e quando lesionou os dois punhos, pelo trabalho excessivo.
Recentemente, se viu frente a uma nova oportunidade e a exigência do ensino médio completo. Fortalecida, enxergou a virada de chave para alcançar o objetivo de conseguir um emprego menos cansativo: “Agora é minha hora de pensar em mim”. Lembrou dos filhos encaminhados na educação e decidiu voltar a estudar, com a expectativa de conclusão neste mês.
Segundo ela, a experiência nos encontros com mulheres foi decisiva para voltar à escola e reacender o desejo pela formação acadêmica. “Meu sonho é terminar meus estudos e fazer minha faculdade de pedagogia”, revela. Após nove anos fora da sala de aula, enxergar-se novamente nesse cenário, aprendendo e desenvolvendo habilidades e impulsionando os conhecimentos que já tem, a (re)apresentou um horizonte de possibilidades, sonhos e caminhos para a realização.
Histórias como a de Paula nos inspiram a seguir impulsionando narrativas de transformação. Fortalecer atuações de incidência como essas e tantas outras é caminho para a garantia dessa continuidade.
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