Lei nº 15.280/2025 e o desafio da violência sexual: avanços legais, dados alarmantes e reflexões sobre a punição no Brasil
Manuela Soler 1
Sarah Sales 2
O direito da criança e do adolescente ganhou mais uma ferramenta para a garantia da proteção e o enfrentamento das violências sexuais: a Lei n.º 15.280, publicada em 5 de dezembro de 2025. Em seu conteúdo, a nova lei inclui no Código Penal o agravamento de penas para crimes praticados contra pessoas em situação de vulnerabilidade, como a exemplo do crime de estupro de vulnerável (quando há conjunção carnal ou ato libidinoso contra criança ou adolescente menor de 14 anos de idade) e estabelece que as penas, que antes podiam chegar ao máximo de 15 (quinze) anos, no caso de estupro, passaram para 18 (dezoito) anos.
Se a ação gerar lesão de natureza grave, a pena passou de 20 para 24 anos de prisão e, se resultar em morte da vítima, passou de 20 para o máximo de até 40 anos, além de multa. Além do agravamento das penas, foram instituídas novas medidas protetivas e de fiscalização, tais como a inclusão de artigo que tipifica como crime o descumprimento de decisão judicial que deferiu medidas protetivas de urgência, podendo a pena chegar a até 5 (cinco) anos de reclusão e multa.
Importante ressaltar que, enquanto a Lei Henry Borel concentra-se majoritariamente na violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, a nova lei amplia a proteção a partir da condição de vulnerabilidade da vítima, permitindo a aplicação das medidas independentemente do vínculo familiar e, em alguns casos, independentemente do tipo penal investigado, incluindo, assim, novos artigos no Código de Processo Penal.
O art. 350-A, por exemplo, autoriza o juiz a aplicar medidas protetivas de forma imediata, com base em indícios da prática do crime, reforçando a lógica da prevenção e da proteção integral. Entre as inovações mais relevantes, destaca-se a cumulatividade obrigatória da medida protetiva com a monitoração eletrônica do autor, bem como a disponibilização de dispositivo de alerta à vítima, previsão inexistente na Lei Henry Borel.
Outro ponto relevante é o reforço das medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialmente no que se refere ao tratamento médico, psicológico e psiquiátrico, não apenas para as vítimas, mas também para seus familiares, reconhecendo-se a importância da rede de cuidado direto da criança ou do adolescente para a efetividade da proteção integral.
A urgência de tais medidas é reforçada pelos dados alarmantes da violência sexual, especialmente no contexto de crianças e adolescentes. Entre 2015 e 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (10 a 19 anos) no Brasil.1 As meninas são as principais vítimas em ambos os grupos. Entre as crianças, 76,8% das notificações foram contra meninas, e entre os adolescentes, essa proporção é ainda maior, chegando a 92,7%2.
Essa discrepância pode ser atribuída à tradição patriarcal e a fatores de interseccionalidade, como raça, classe e gênero, que expõem meninas (especialmente as negras/pardas, que figuram com maior frequência nas notificações) a vulnerabilidades ampliadas. A residência da vítima é o local de maior ocorrência, respondendo por 70,9% dos casos em crianças e 63,5% em adolescentes, indicando que o agressor geralmente é alguém próximo: familiares e conhecidos são responsáveis pela maioria das agressões.3
O aumento de pena no estupro de vulnerável, promovido pela Lei nº 15.280/2025, e as discussões recentes sobre o feminicídio e o recrudescimento penal (Lei nº 14.994/2024) refletem a busca do legislador por uma resposta mais rígida a crimes graves, alinhada ao princípio da proporcionalidade. A legislação procura garantir que a pena seja compatível com a gravidade das consequências psicológicas e psíquicas impostas às vítimas da violência sexual, muitas vezes duradouras ou permanentes.
Entretanto, é necessário questionar se o endurecimento penal, por si só, é eficaz para reduzir a criminalidade no Brasil. A reflexão não é nova: Cesare Beccaria (2017), em “Dos Delitos e das Penas”, já apontava que a certeza e a celeridade da punição são mais eficazes para a prevenção do crime do que a sua mera severidade. O simples aumento das penas não é capaz de enfrentar as causas estruturais da criminalidade, que envolvem fatores sociais, econômicos, educacionais e culturais.
Por fim, outro destaque da Lei n.º 15.280/2025, é a instituição da coleta obrigatória de material genético (DNA) para condenados por crimes graves, incluindo crimes contra a dignidade sexual. Essa coleta alimentará o Banco Nacional de Perfis Genéticos – BNPG, que é regulamentado pela Lei nº 12.654/2012, coordenado pela Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG).
A expectativa com o uso da coleta de material genético em casos de violência sexual pode representar um avanço importante na responsabilização penal, uma vez que o cruzamento de perfis genéticos permite a reabertura de casos antigos arquivados por falta de provas, bem como a conexão entre diferentes boletins de ocorrência que, isoladamente, não haviam sido relacionados. Além disso, o fortalecimento da prova técnica reduz a dependência exclusiva da palavra da vítima para a persecução penal, contribuindo para a diminuição de processos de revitimização, especialmente em casos envolvendo crianças e adolescentes.
No geral, percebe-se que ainda há muito a debater e refletir sobre a repercussão do aumento de pena como resposta central à violência. Ressalte-se que a crítica ao aumento de penas como resposta isolada não implica a negação da gravidade dos crimes de violência sexual, nem da necessidade de responsabilização penal dos autores, mas aponta para a insuficiência de soluções exclusivamente punitivas.
Para Angela Davis, “as prisões não fazem desaparecer os problemas sociais; elas fazem desaparecer seres humanos”, evidenciando que políticas penais baseadas exclusivamente no aumento de penas e no encarceramento tendem a ocultar conflitos sociais profundos, além de impactar de forma desproporcional populações historicamente marginalizadas, especialmente negras e periféricas. Assim, o enfrentamento da violência sexual exige não apenas respostas penais eficazes, mas também investimentos estruturais em prevenção, proteção social e no fortalecimento das redes de proteção e cuidado.
Autoria:
1 Manuela Soler de Lima, Advogada, especialista em Direito Civil e Processual Civil (ESMAPE) e Coordenadora de Projetos de Direito da Criança e do Adolescente do CENDHEC.
2 Sarah Sales, Graduanda em Direito pela UNICAP. Estagiária de Direito no Programa Direitos de Crianças e Adolescentes do Cendhec. Estudante pesquisadora PIBIC/UNICAP.
Notas:
- Conforme o Boletim Epidemiológico (v. 54, n. 8): a p. 2 define o público-alvo; a p. 3 detalha as notificações de violência sexual no período. ↩︎
- Ver Boletim Epidemiológico, v. 54, n. 8, p. 4 (crianças) e p. 6 (adolescentes).
↩︎ - Dados extraídos do Boletim Epidemiológico (v. 54, n. 8): as ocorrências e perfis de agressores relativos a crianças constam na p. 5 e para adolescentes, na p.6. ↩︎
REFERÊNCIAS:
BRASIL. [Lei nº 15.280 (2025)]. Lei nº 15.280, de 5 de dezembro de 2025. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para agravar a pena dos crimes contra a dignidade sexual de pessoa vulnerável […]. Brasília, DF: Presidência da República, [2025]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2025/Lei/L15280.htm. Acesso em: 12 dez. 2025.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2015 a 2021. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF, v. 54, n. 8, 29 fev. 2024. Disponível em: hboletim-epidemiologico-volume-54-no-08. Acesso em: 12 dez. 2025.
BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi di. Dos delitos e das penas. Tradução: Paulo M. Oliveira. São Paulo: EDIPRO, 2017.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marina Vargas. 9. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2023.
JORGE, Carlos Henrique Miranda; ALEVI, Ana Beatriz Venancio. O Princípio da Proporcionalidade nos crimes contra a dignidade sexual: uma análise sobre o crime de estupro e estupro de vulnerável. Revista Jurídica Direito & Realidade, [S. l.], v. 12, n. 1, p. 168-186, 2024. Disponível em: https://share.google/m935HvducivJ2RWji. Acesso em: 15 dez. 2025.
SILVA, Adriana de Lourdes da; DORNELAS, Higgor Gonçalves; CALIGIORNE, Sordaini Maria; MARINHO, Pablo Alves. Bancos de Perfis Genéticos Criminais no Brasil: Histórico e Evolução. Brazilian Journal of Forensic Sciences, Medical Law and Bioethics, [S. l.], v. 9, n. 4, p. 499-520, 2020. Disponível em: https://share.google/LDd1skcHaU7ll9SUM. Acesso em: 18 dez. 2025.
TAVARES, Guilherme da Silva. Ineficácia do aumento de pena no combate a criminalidade nos últimos 20 anos. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 10, n. 5, p. 2956-2967, maio 2024. Disponível em: https://share.google/eR3b5xiP8l50m4fai. Acesso em: 15 dez. 2025.
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