A construção de ‘um dos maiores complexos militares do mundo’, em Pernambuco, pode resultar no maior desmatamento do século no estado
Governo de Pernambuco e exército brasileiro utilizam ‘desenvolvimento econômico’ como justificativa de projeto que desmatará 200 mil árvores de Mata Atlântica no estado, sem estudos de impacto socioambiental.
Texto: Luana Farias
Através do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), representado pelo desembargador Ricardo Paes Barreto, o governo e o exército derrubaram, em outubro, a liminar da 1ª Vara Cível da Comarca de São Lourenço da Mata, que proibia qualquer empreendimento público ou privado e/ou intervenção humana no Corredor Ecológico da Área de Preservação Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe. O argumento para a suspensão foi de que a liminar feria a autonomia do Estado e da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), em suas prerrogativas administrativas, constitucionais e legais.
A liminar era uma tentativa de barrar a construção do complexo militar da Escola de Sargentos e Armas (ESA), no Campo de Instrução Marechal Newton Cavalcanti (CIMNC), que prevê derrubada de 200 mil árvores em 94 hectares de Área de Proteção Ambiental. A proibição foi solicitada pela sociedade civil, representada pelo Fórum Socioambiental de Aldeia, através do Ministério Público.
É importante salientar que a construção da ESA na Área de Proteção não foi autorizada. Apesar de possibilitar projetos e construções, a suspensão é uma brecha, mas não uma autorização, como explica a antropóloga e integrante do Fórum Socioambiental de Aldeia, Vânia Fialho.
Desrespeito às leis de proteção ambiental
A construção do complexo engloba a Escola, o Batalhão de Comando e Serviço e duas vilas militares para cerca de 7 mil pessoas e será, segundo o próprio exército, um dos maiores do mundo. Enquanto se vale da falácia desenvolvimentista e mercantilista, justificada pelo possível avanço econômico da região, o exército não apresentou estudos para a visualização do real impacto aos moradores do entorno.
A antropóloga enfatiza que “os poderes e entidades se utilizam das questões climáticas e da pauta ambiental, para conseguir promover seus interesses, mas há muitas contradições nesse processo”.
A área endereçada para a o empreendimento é o CIMNC, trecho da APA sob tutela do exército que há décadas é responsável por zelar a mata. No entanto, o projeto ignora a importância e diversidade do bioma e desconsidera leis e diretrizes ambientais, como a Lei da Mata Atlântica (Lei Federal 11428/2006), que regulamenta a proteção e o uso da biodiversidade e recursos dessa floresta.
Além disso, desrespeita o arcabouço legal do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Aldeia-Beberibe, publicado em maio de 2012, para a implantação e gestão da Unidade de Conservação (UC) e para a manutenção e uso sustentável dos ecossistemas e recursos naturais na Região Metropolitana do Recife (RMR).
Referente à derrubada das árvores e ao uso da área de preservação ambiental, a governadora Raquel Lyra fala em compensação do desmatamento, no entanto, “não existe compensação de um bioma que está em extinção!“, como enfatiza a coordenadora do Movimento de Juventude Indígena de Pernambuco em Contexto Urbano e bióloga em formação pela UFRPE, Joyce Santana, que completa: “A Mata Atlântica dominava quase todo território brasileiro, sendo o bioma mais diverso que a Amazônia, hoje não tem nem 12% do que tinha antes, do tanto de espécies que já foram extintas”.
A Área de Preservação Ambiental Aldeia-Beberibe
A APA Aldeia-Beberibe abrange o maior remanescente de Mata Atlântica ao norte do São Francisco e apresenta um elevado número de mananciais hídricos que contribuem com aproximadamente 60% do abastecimento de água da Região Metropolitana do Recife (RMR). O Rio Catucá alimenta o Sistema Botafogo, um dos principais sistemas de abastecimento de água da Região Metropolitana. O trecho também abriga centenas de espécies endêmicas de animais em risco de extinção.
A área é uma Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável que envolve os municípios: Abreu e Lima, Araçoiaba, Camaragibe, Igarassu, Paudalho, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata. Sua criação, dada pelo Decreto Estadual nº 34.692, de 17 de março de 2010, priorizava proteger os recursos hídricos, as raras espécies da fauna e da flora da Mata Atlântica, que estão ameaçadas de extinção, além de assegurar a melhoria da qualidade de vida da população que habita a UC e seu entorno.
“Essa área toda é uma área com muitos condomínios, mas Aldeia não é só isso, Aldeia é uma área muito diversa, de muitas desigualdades”, explica Vânia Fialho que ressalta a má distribuição hídrica na região: “ali tem grandes fontes de água mineral e mesmo assim tem bairros vizinhos que só recebem água duas vezes ao mês”. As tensões e abismos sociais já existentes no entorno são escancarados e serão acentuados diante da destruição do bioma.
Salve APA Aldeia Beberibe: uma convocação à luta
Frente à ameaça na região, o Movimento Salve APA Aldeia-Beberibe é composto por mais de 60 coletivos de diferentes áreas. Dentre eles, grupos de pesquisa, articulações, movimentos, organizações, que apresentam lógicas de sobrevivência, além de outra perspectiva de desenvolvimento contra a mercantilização de recursos naturais. Foi iniciado pelo Fórum Socioambiental de Aldeia, que embora ocupe cadeira num grupo de trabalho do governo para debater o projeto, aponta falhas na eficácia do diálogo e na representatividade.
Compondo está articulação, a atuação do Movimento da Juventude Indígena de Pernambuco em Contexto Urbano (MOJIPE) é fundamental na luta pela preservação da área. É imprescindível falar sobre questões ambientais e climáticas com a presença dos povos indígenas.
“Estamos falando de mudanças climáticas há muito tempo“. Coordenadora do MOJIPE em Contexto Urbano, Joyce demarca a importância do movimento nas lutas ambientais. “Quando o movimento indígena fala, traz a questão da sobrevivência, da resistência do território, que eu acho que só quem vive, só quem se sente pertencente àquele território vai entender“. Pertencente ao povo Fulni-ô, de Águas Belas, a jovem é moradora de São Lourenço da Mata e denuncia os desafios enfrentados por indígenas na Região Metropolitana do Recife (RMR).
“A entrada do movimento de juventude indígena e de movimentos indígenas aliados, que chegam e dizem ‘tamo junto’, é importante porque fortalece o que a gente já fala há muito tempo”. Joyce lembra que a primeira audiência pública foi marcada por tentativas de silenciamento e manifestações de ódio dos representantes que cooptavam pela construção da ESA. A reunião foi organizada pelo exército, que na ocasião questionava a presença de povos indígenas em Pernambuco e em contexto urbano.
A gente apresentou dados, coisas muito concisas, que eles não conseguiram apresentar. Era uma falácia de desenvolvimento e economia, mas eles esquecem que pra falar de desenvolvimento e economia a gente precisa falar da pauta social e ambiental, elas não estão separadas.
Joyce Santana.
Em Janeiro deste ano, representantes do MOJIPE foram expulsos de uma coletiva de imprensa sobre a realização do projeto da ESA, com representantes da Presidência da República, do governo do Estado de Pernambuco e do Exército. As expulsões foram determinadas pela Secretaria da República com o argumento de prevenir um possível protesto não anunciado, organizado pelos jovens, que poderia intervir em suas estratégias políticas.
O projeto que desenha a construção da Escola de Sargentos e Armas (ESA) na APA Aldeia-Beberibe partiu do governo Bolsonaro, ainda em 2021, junto ao exército brasileiro. Atualmente, tem o apoio do governo do estado, com Raquel Lyra retomando a movimentação do empreendimento que estava estacionado, e do atual governo federal.
Não é acaso Pernambuco ser a escolha dos autores do projeto para sediar a ESA, dentre as outras opções estavam Paraná e Rio Grande do Sul. Foi na região nordeste, a única do país sem um complexo militar, que o ex-presidente Bolsonaro perdeu as últimas eleições presidenciais.
Nós estamos diante de um problema político não só do ponto de vista ideológico, mas do ponto de vista da ideia desenvolvimentista, inclusive do próprio governo federal e do governo do estado nesse momento. As decisões não têm sido tomadas do ponto de vista técnico, considerando os problemas.
Vânia Fialho.
Desde o início da luta pela defesa do território, o movimento de resistência é frequentemente atacado e o diálogo praticamente nulo. Os responsáveis pela construção do complexo militar não abrem mão do trecho de mata atlântica. Apesar do aceite ao pedido de diminuição da área atingida, de 180 hectares, para 94 hectares, integrantes do Salve APA reivindicam desmatamento zero!
Alternativas negadas
O movimento Salve APA Aldeia-Beberibe desenvolveu estudos que apontam opções menos – ou nada – invasivas para a construção da ESA e do Arco Metropolitano. Dentre elas, a construção da Escola em áreas já desmatadas do CMNIC ou em regiões vizinhas. Mas, obtiveram como resposta negativa a distância entre as opções locacionais e a área que já pertence ao exército.
Frente a isso, o movimento apresentou uma reestruturação do Arco Metropolitano Norte. Projeto do governo que esteve pausado, graças a luta do movimento ARRUDEIA. O Arco cortaria a APA ao meio com uma extensa rodovia, contrário a isso, o Salve APA propôs a circulação ao redor da mata, sem danos diretos ao bioma, finalizando a via na área alternativa para a escola. “O Arco construído de forma a proteger a mata beneficiaria a opção locacional pra ficar fora da APA, então do ponto de vista ecológico, seria ótimo, mas essas alternativas não foram aceitas”, conta Vânia Fialho.
Outra opção apresentada é a retomada do projeto dos corredores ecológicos. Joyce Santana explica que “os corredores são um projeto de extrema importância pro estado de Pernambuco e para área de proteção ambiental, porque vão unir todos os fragmentos de Mata Atlântica que a gente tem”.
O governo, entretanto, alega ter perdido a pasta do projeto, que foi arquivado. A coordenadora do MOJIPE pontua:
A gente entende que isso foi uma jogada de marketing para a escola vir. Se fosse implantado os corredores ecológicos dentro da Área de Proteção Ambiental o nível de dificuldade para o complexo militar seria muito maior.
Fortalecida, a resistência continua
“Em relação aos corredores ecológicos, o Ministério Público Estadual provavelmente vai recorrer, estamos vendo outras possibilidades de frentes”, explica Vânia Fialho. A resistência é certa, a luta pela garantia da proteção da APA Aldeia-Beberibe, sem invasões, segue firme.
A coordenadora do MOJIPE defende que é preciso “fazer com que as pessoas entendam que é importante preservar o pouco que a gente tem desse bioma. Ele é interligado também por outros e é possível sentir impactos, o que acontece aqui, é sentido em outros biomas também”.
Desenvolvimento econômico sem compromisso social e ambiental é negligência, exemplo disso, a tragédia das chuvas de 2022, em Pernambuco, foi anunciada e é reflexo de uma série de violações. Derrubar 200 mil árvores é assinar responsabilidade na probabilidade de repetição dessa história. Decidir desmatar mais de 90 hectares de área de preservação ambiental em meio à emergência climática no país explicita, mais uma vez, o descompromisso do poder público com as urgências sociais, ambientais e suas abrangências culturais.
O Movimento Salve APA Aldeia-Beberibe segue atuando, em diferentes setores sociais, ambientais e jurídicos, pela construção de possibilidades sustentáveis, aliadas com a preocupação climática e territorial. A prioridade é o desmatamento zero. A mobilização de toda sociedade em defesa da área é fundamental para o fortalecimento da luta.
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