Golpe civil-militar de 1964: remanências e impunidade
Por Manoel Severino Moraes de Ameida
A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu em 1948, preconizou uma doutrina internacional baseada na humanização das relações de poder que transitaram da racionalidade capitalista neoliberal para um mundo com justiça e paz. Nesse sentido, o Cendhec – Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, na passagem dos 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964, é um centro de defesa que nasceu da opção pelos pobres e de uma sociedade pautada pela defesa da dignidade humana.
Nestes 35 anos de vida, pautamos em cada momento a necessidade da democracia participativa como valor constitutivo de novos direitos alicerçados nos valores da autonomia dos povos, no reconhecimento da solidariedade e da liberdade como dimensões dos direitos e garantias fundamentais sobretudo das crianças e adolescentes e pelo direito à cidade e moradia justas.
Ao analisar o governo militar a maior vítima foi a democracia, e com ela, o direito a comunicação como um direito fundamental, uma prova da gravidade desse delito é o desconhecimento pela ampla maioria da população dos massacres dos povos indígenas, conforme o reconhecimento do perdão coletivo realizado pela Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos que aprovou por unanimidade, no último dia 2 de abril, as primeiras anistias coletivas do povo Krenak e Guarani-Kaiowá, em face das perseguições que o regime promoveu com seus ancestrais deixando marcas até os dias atuais. A ampla repercussão dos indultos foi o fato novo nestes 60 anos de pós golpe civil-militar.
Esta mudança decorreu da alteração do art. 16 do Regimento Interno da Comissão de Anistia, aprovado pela Portaria nº 177, de 22 de março de 2023. Trazendo a oportunidade de reconhecer o caráter coletivo dos danos causados a grupos e organizações que resistiram a barbárie do autoritarismo do governo militar. A inovação tem como objetivo o pedido de desculpas (em caráter simbólico), após requerimento feito e protocolado que é analisado por relatora(or) apresentou várias recomendações que agora são obrigações que o Estado brasileiro assumiu de forma pública e em caráter irrevogável.
Passados 60 anos dos acontecimentos verifica-se que o avanço na justiça de transição no Brasil se traduz ainda na necessidade de políticas públicas de memória. Em tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unicap, denominada: “Ditadura e transição programática: a tutela multinível e a judicialização dos crimes da ditadura”[1], apresentei os argumentos jurídicos pelos quais os direitos transicionais são na doutrina internacional dos direitos humanos direitos fundamentais recepcionados pelo Brasil.
Nesta medida, o legado autoritário de 21 anos de ditadura, só será efetivamente superado no país quando construirmos mecanismos eficazes de monitoramento dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais relacionando o dever de reparação à efetiva reforma das instituições, como a desmilitarização das polícias militares, autonomia da polícia científica e ampliação de espaços de memória como o Memorial da Democracia Fernando de Vasconcellos Coelho, órgão de continuidade da Comissão da Memória e da Verdade Dom Helder Camara.
Trata-se de repensar nossa relação com o passado, ampliando e consolidando novos direitos no campo e na cidade, potencializando a necessidade de superarmos o racismo estrutural decorrente de práticas ainda marcadas pelo modelo colonial, escravocrata, e patriarcal que fundamenta o direito brasileiro e construir uma nova justiça nos marcos decoloniais.
O nosso sistema de justiça precisa ser repensado, como verificamos no caso de Marielle Franco e Anderson Gomes, mesmo sendo assassinatos de repercussão internacional, só foi desvendado seis anos depois do crime, e a revelação mais chocante, segundo investigação da Política Federal, um dos mentores era o chefe da polícia civil do Rio de Janeiro. Evidenciando uma polícia sem controle externo. É fundamental que as corporações policiais sejam efetivamente monitoradas e suas carreiras serem construídas à luz da efetiva contribuição da legalidade democrática.
A Constituição de 1988 é um marco na redemocratização do país e resistiu a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023. Um movimento fortalecido com a infiltração e politização dos agentes de segurança pública, conforme ficou evidente na conivência e complacência com os manifestantes golpistas, conforme transmissão, em tempo real, pelas redes sociais. No imaginário dos denominados “patriotas” que ocuparam por meses as frentes dos quarteis, pedindo intervenção militar, circulou em torno da defesa dos ditadores, dos seus governos e ações contra o “inimigo interno”, por isso elegeram nesta nova onda conservadora o Supremo Tribunal Federal – STF como inimigo, pelo protagonismo assumido pela corte na defesa do estado democrático de direito.
Mas a tentativa de golpe foi criminalizada no Brasil pela lei nº 14.197, sancionada em 1º de setembro de 2021, que alterou o Código Penal, inserindo o artigo Art. 359-L cujo conteúdo transcrevo in verbis: “(…) tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.”. Com esta mudança, de apenas três anos, conseguimos prender e julgar vários golpistas, produzindo um precedente positivo na chamada democracia defensiva que constrói mecanismos de autodefesa conforme Karl Loewenstein propôs em 1937, na necessidade de viabilização de uma democracia militante frente o crescimento do nazismo na Alemanha.
Neste mesmo diapasão é urgente pensar na educação para os direitos humanos através do sistema de garantias de direitos como pilar fundamental da defesa da democracia, que significa tomar medidas para enfrentar as redes e posturas que acolhem o abuso em matéria de direitos fundamentais em detrimento ao sofrimento das vítimas, que marcadas, tem suas vidas destruídas, quando não, sua dignidade afetada pela falta de garantias de direitos, isso fica mais evidenciado quando tratamos das violações contra crianças e adolescentes e a falta de fluxos de atendimento que atendam com a devida urgência as violações as quais são submetidas.
Em parte pelo fato de termos uma sociedade adultocêntrica pautada na violência e não no diálogo intergeracional, verifica-se o aumento do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes, que precisa ser encarada como um passivo civilizatório de uma sociedade que se furta em atentar para sua responsabilidade constitucional nestes delitos.
Ao longo dos últimos anos, os governos federais implementaram a agenda neoliberal e seu impacto no sistema de garantias de direitos, foi um verdadeiro desmonte da nossa capacidade preventiva do cuidado e de políticas de proteção. Mesmo que paradoxalmente tenhamos avançado na legislação especial em relação aos mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes na Lei nº 14.344/2022, também conhecida como Henry Borel. Vários de seus dispositivos ainda são um desafio para o sistema de justiça. Em especial quando essa lei acrescenta à Lei de Abuso de Autoridade, Lei 13.869/2019, a Violência Institucional no seu art. 15-A, como aquela cometida pelo agente público que pratica ato que enseja revitimização da vítima ou testemunha de violência, incorporando o Estado através de seus agentes a esfera da responsabilização penal no descumprimento da Proteção Integral de Crianças e Adolescentes.
Ao demonstrar o quanto temos de desigualdades no sistema de direitos, não poderíamos deixar ao lado a necessidade de evidenciar as violações no direito à cidade, que marcada pelas desigualdades no território, e nele, que o capitalismo rentista amplia seus lucros com a exploração cada vez maior de áreas que antes foram ocupadas pela população mais vulnerável. É por este motivo, que a construção de uma cidade mais justa e ecologicamente sustentável precisa prever os direitos pela moradia popular como paradigma de uma outra sociabilidade além do acúmulo do capital que representou, até o momento a propriedade urbana. O direito à moradia como condição inegociável na democracia constitucional, uma vez que temos que garantir o acesso à dignidade do lar para as famílias em alta vulnerabilidade social, muitas delas, pela situação de fome e miséria, acabam sendo jogadas nos braços do crime organizado e na “proteção” das milícias, retroalimentando a violência que pautamos ao longo de todo artigo.
Diante de tantos desafios, a luta por justiça e paz parece apenas ter iniciado, talvez se olharmos no plano de nossas ruas e casas. Mas se olharmos para o mundo, nesta casa comum, vemos o quão pequeno é o nosso planeta e se “dividíssemos entre nós a responsabilidade de sermos filhos de Deus e irmãos uns dos outros, o mundo mudaria de rumo”, Dom Helder Camara, em “A matemática da vida”, 10 de janeiro de 1977.
Manoel Moraes é Coordenador Geral do Cendhec. Advogado e Cientista Político. Titular da Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Membro da Comissão de Anistia/Ministério dos Direitos Humanos.
[1] Disponível em: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/1850.
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