
Retrocesso e perda de direitos: Projeto de Lei tramita no Congresso para proibir o aborto a partir da 22ª semana de gestação
Documento fere princípios do ECA e expõe mulheres vítimas de violência; entenda
Texto: Camila Deschamps
Imagens: Alcione Ferreira
Tramita, neste mês de outubro, o Projeto de Lei (PL) 2.524/2024, que visa a proibição do aborto a partir da 22ª semana de gestação. O texto foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Congresso Nacional no dia 15 do mesmo mês. Caso o material avance, qualquer interrupção da gravidez a partir deste período e que não envolva riscos de morte da mãe será criminalizado.
O documento ainda impõe a nova determinação a casos os quais o aborto legal é permitido na Constituição brasileira, como quando a gravidez é decorrente de um estupro ou de anencefalia fetal -má formação que acontece no início da gestação e é caracterizada pela ausência do encéfalo e calota craniana (porção do crânio que protege o cérebro), além de partes do sistema nervoso que se tornam rudimentares, segundo informações da Rede D’Or-. Nestas situações, segundo o PL, caso a gestação já tenha ultrapassado a 22ª semana, período correspondente aos cinco meses e meio, o parto poderia, apenas, ser antecipado.
O projeto não dá outros detalhes sobre os perfis de mães que serão atingidas, caso seja aprovado. Não existem condutas pensadas para suprimir os danos -físicos e psicológicos- de uma gravidez levada adiante em ambos os casos, tanto em decorrência de estupro quanto em casos de anencefalia. No entanto, ao recortar o perfil de mulheres que sofreram violência sexual e engravidaram, é possível traçar quem são essas vítimas: segundo dados do Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, entre 2017 e 2020, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total.

Equívoco
O projeto, de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e relatoria senador Eduardo Girão (Novo-CE), tem objetivo reconhecer, de forma absoluta, a viabilidade do feto e estabelecer “os direitos do nascituro na ordem civil”, segundo informações da Agência Senado. Em contrapartida, o texto põe em xeque parâmetros estabelecidos pela legislação brasileira e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto. O STF reconhece o direito ao aborto em casos de risco à vida da mulher, gestação decorrente de estupro e anencefalia.
Além disso, o autor do PL citou a Constituição Federal e o Código Civil para reforçar a importância da validação da vida desde a concepção e trouxe ao debate o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirmando que o documento assegura um atendimento médico humanizado no no decorrer da gestação, no parto e no período de pós-parto.
O que diz o ECA:
No que diz respeito ao direito à vida e ao atendimento médico antes, durante e depois do parto, o Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde do Estatuto da Criança e do Adolescente enfatiza:
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Art. 8º É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.
(Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
Mediante leitura dos trechos acima, retirados do ECA na íntegra, entende-se que as políticas que asseguram o direito à vida e ao atendimento humanizado às gestantes, aspectos os quais o autor do projeto se refere, se alinham às condições sociais das mães em questão e não refletem diretamente sobre gestações em decorrência de estupro ou de incompatibilidade à vida, como é o caso da anencefalia.

Ademais, o prosseguimento de uma gravidez originária de estupro é o reforço e lembrete diário da violência sofrida pelas vítimas, em sua maioria, meninas. Manuela Soler, advogada do Programa Direitos de Crianças e Adolescentes do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec), acredita que um projeto como PL 2.524/2024 contém controle moral e reliogioso sobre os corpos femininos e enfatiza a urgência da luta contra a implementação do documento em debate: “Obrigar uma menina vítima de violência sexual a seguir com a gestação é prolongar a violência porque, além da violência sofrida, ela será revitimizada” e completa: “ela terá a sua infância e o seu corpo sacrificados, impondo riscos concretos à sua saúde e até ao seu projeto de vida, pois situações como esta podem aumentar a evasão escolar e aprofundar as desigualdades.”
Futuro
Agora, o PL segue para a análise da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado Federal. Neste momento, é imprescindível repensar a valorização das liberdades individuais e priorizar o mantimento de políticas que protegem a mulher, além de entender que as decisões dos três poderes afetam a população de forma desigual.
“Dogmas morais, pessoais e religiosos não podem estar acima da saúde pública, do direito à vida, e não pode haver negligência de direitos em razão de crença”. O enxerto é de fala da deputada federal Sâmia Bonfim (Psol), em debate à CNN Arena.
Caso o texto avance, será, cada vez mais evidente, o descompromisso da conjuntura política atual com a proteção de populações vulneráveis à violência sexual, em especial, às crianças e adolescentes, parcela social mais afetada pela problemática.
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