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A Arma de Fogo e (n)a Cidade

Manoel Severino Moraes de Almeida [1]

Luis Emmanuel Barbosa da Cunha [2]

Na quarta-feira, 9 de abril de 2025, a Prefeitura do Recife deu mais um passo à frente para armar a guarda municipal do Recife com equipamentos letais. Foi dada a informação sobre uma cooperação técnica com a Polícia Federal e a necessidade de criação de corregedoria, ouvidoria, acompanhamento psicológico e uso de câmeras corporais. Mais uma força armada. Precisamos de mais uma força armada?

A segurança pública, nos ditames do artigo 144 da Constituição Federal de 1988, é composta pelas polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal (se é que sobrou algo dela!), civil, militar e bombeiros militares e a penal. O poder de polícia, no qual essas polícias estão inseridas, é poder de criar regras, fiscalizar e moldar comportamentos.

A guarda municipal, por sua vez, é um instrumento de proteção patrimonial dos municípios desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Pode haver alteração quanto ao modelo de segurança pública? No que a guarda municipal pode decisiva o suficiente para superar a crise da segurança pública, nesse caso, no Recife? Voltemos uns meses no tempo para lembrar o esforço do governo federal para controlar o uso da arma de fogo no Brasil.

O Governo Federal publicou, no dia 24 de dezembro de 2024, o Decreto 12.341/2024, que trata do emprego de arma de fogo por profissionais de segurança pública, em regulamentação da Lei 13.060/2014. Exatos dez anos de lapso entre a lei e o decreto, sendo este de alcance restrito às polícias federal, rodoviária federal, penal federal e à enigmática polícia ferroviária federal.

Nesse lapso temporal, estão o golpe institucional contra a Presidenta Dilma, a intervenção federal no Rio de Janeiro, o assassinato da Vereadora Marielle Franco e o desgoverno da liberação total de armas do inominável. É importante lembrar isso porque não se tratou de um lapso demasiado de tempo para fins de estudos e debate com os profissionais da segurança pública sobre em que medida o uso da arma de fogo e de outros instrumentos letais é necessário para a melhor prevenção, dissuasão e repressão policial.

Nesse lapso temporal, vocês devem se lembrar do episódio dos 80 disparos no carro do músico Evaldo dos Santos Rosa, morto por soldados do Exército (2019), e do episódio da câmara de gás da PRF, quando Genivaldo de Jesus Santos, pessoa em surto, foi morta após ser presa na viatura da PRF e inalar gás (2022). Os episódios de violência policial fatal protagonizados pela Polícia Militar de São Paulo em 2023 e em 2024 e pela Polícia Militar de Pernambuco em Camaragibe em 2023 mostram que se tratam de “casos isolados em série”, para refletir sobre a desculpa trazida a público pelo Governador Tarcísio de Freitas: casos isolados. Em verdade, em outras palavras, trata-se de uma prática reiterada e escalonada de violência policial sem contenção institucional, seja pela própria corporação e pelos governos competentes, seja pelo controle externo da atividade policial (Ministério Público), seja via Judiciário.

Com efeito, hoje, a Cidade é o maior palco da violência, seja policial, seja da bandidagem. Isso reflete diretamente sobre o direito à cidade e à moradia adequada. Os episódios trazidos demonstram na prática como é perigoso para determinadas pessoas transitarem no espaço público durante o dia ou à noite, estarem em determinados territórios das “balas perdidas” ou mesmo em suas casas. São os territórios em que as pessoas precisam provar que são “pessoas de bem”, caso contrário, prevalece a presunção da marginalidade, portanto, de ser um alvo, que depois de abatido lhe será dada a pecha de portador de antecedentes criminais.

O lapso omissivo de dez anos entre a Lei 13.060 de 2014, que disciplina o uso da força pelos profissionais da segurança pública, e o Decreto 12.341/2024, que o operacionaliza, permitiu um agravamento dessa prática policial do “atira, mata, depois pergunta”. Nesse período, o regime democrático foi e tem sido alvejado por toda sorte de iniciativa em derrubá-lo, um período nefasto de ofensivas contra constitucionais e tentativas antidemocráticas.

Todos os esforços de 1988 a 2014 para tornar republicana, democrática, pública, defensora e promotora de direitos humanos uma polícia, pode-se dizer, estão praticamente perdidos. Uma polícia, que não foi passada a limpo por uma Justiça de Transição e que foi essencial à repressão política durante a ditadura civil-militar (1964-1985), guarda ainda em si o viés autoritário. Gerações de novos policiais e de autoridades políticas estão surfando no populismo policialesco bolsonarista, que enaltece essa prática degenerada do assassinato, da execução sumária e extrajudicial, como um marco de segurança pública.

É urgente colocar esse gênio de volta à lâmpada e reiniciar esse processo de humanização e constitucionalização das polícias no Brasil. O uso das armas de fogo, dos instrumentos letais e da violência policial deve ser firmemente acompanhado, monitorado e repelido seu excesso a fim de que seu uso seja dirigido ao enfrentamento exclusivo à bandidagem ralé e à bandidagem de alto escalão. As pessoas cidadãs e os(as) bons/boas policiais não devem ser vítimas dos meios de enfretamento à violência.

Em outras palavras, armar a guarda municipal do Recife não tem lastro algum que possa evidenciar uma contribuição concreta para reduzir a violência e fortalecer a segurança pública. Ao contrário disso, inserir mais um personagem armado no sistema de segurança pública sem uma função específica, seja preventiva, investigativa ou acautelatória é uma iniciativa de fragilização de algo que já não tem funcionado bem desde sempre.


[1] Advogado e Cientista Político. Coordenador Geral do Cendhec e titular da Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Professor de Direito Constitucional.

[2] Advogado. Coordenador do Programa Direito à Cidade do Cendhec. Professor de Direito.

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