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Há Juízes em Roma: a hora da verdade

Manoel Severino Moraes de Almeida[1]

O Brasil tem uma dívida com seu passado recente em relação aos desaparecidos políticos. Mas de 21 anos de ditadura militar ceifaram milhares de vidas das comunidades indígenas, dos trabalhadores do campo e de pessoas que se organizaram na clandestinidade em resistência ao governo autoritário. O Ministro Flávio Dino em decisão história, reagiu em sede de Recurso Extraordinário no STF, em função de um Agravo interposto pelo Ministério Público Federal, em face do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a corte considerou em sua negativa para o processamento criminal que o crime de ocultação de cadáver permanente foi considerado uma “ficção jurídica”, pelas conclusões do STF ao recepcionar a Lei de Anistia de 1979. 

O Ministro Dino protagonizou no STF um novo entendimento que considera um dever natural, ou seja, universal, o direito ao enterramento do morto. Citou “Antígona”, de Sófocles: todos os cidadãos tem um direito natural e inalienável de velar e enterrar dignamente seus mortos”.  Reconhecendo o dano irreparável para os familiares que ao buscar o judiciário brasileiro devem ser acolhidos em seus direitos fundamentais, como os diretos transicionais programáticos.

Citou o desaparecimento de Rubens Paiva que foi transformado em um belo filme que tem impactado milhões de espectadores no mundo inteiro e principalmente no Brasil, que negou sistematicamente aos familiares de desaparecidos políticos o direito à justiça através da responsabilização criminal dos agentes da ditadura militar brasileira.

No livro Ditadura e Transição Programática: A Tutela Multinível e a Judicialização dos Crimes da Ditadura, publicado pela Núcleo Interamericano de Direitos Humanos – NIDH, em 2024, tratei da consolidação pelas decisões da Corte Interamericana e de recente jurisprudência nos tribunais da justiça federal da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, encontramos este princípio no Art. 5, CF88 (BRASIL, 1988), expressamente em três hipóteses: o racismo previsto no Art. 5, inc. XLII, da CF88; a injúria racial, a partir do dia 28 de outubro de 2021, por decisão do STF, com efeitos gerais, por entender que a injúria racial configura um dos tipos penais de racismo, logo imprescritível (Habeas Corpus 154248); e o terceiro caso, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático, Art. 5, inc. LIV da CF88. 

Na sentença sobre o sequestro do pernambucano Edgar Aquino Duarte, o juiz Dr. Silvio César Arouck Gemaque, fundamentou seu entendimento que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. E cita a jurisprudência do STF, que reconhece o caráter de crime de desaparecimento forçado como crime contra a humanidade, trata-se do caso da Extradição de Salvador Siciliano.

Em 9 de novembro de 2016, o STF julgou e negou a Extradição contra o argentino Salvador Siciliano, por maioria (6 votos a 5), neste julgamento, que teve ordem de prisão expedida pelo Judiciário da Argentina por suspeita de ter participado de associação paramilitar chamada ‘Triple A’, que operou entre 1973 e 1975.

No voto do relator, o Ministro Edson Fachin, defendeu que o requisito de prescritibilidade não poderia ser admitido para impedir a extradição nas hipóteses de crime contra a humanidade.

De fato, a regra da imprescritibilidade não pertence ao direito comum, mas a esse campo do Direito a que se convencionou chamar de direito penal internacional. É a seu caráter único entre os ramos tradicionais do direito que se deve reportar a produção de efeitos legais, independentemente de sua concretização pelo legislador nacional. Diversamente dos crimes comuns, as consequências de crimes internacionais ‘não surgem em um primeiro momento, mas ao longo do tempo não cessam de ampliar’ (Jankalevitch, V. L’imprescritilile. Paris, Seuil, 1986, p.18). (SÃO PAULO, 2021a).

           

Em outra parte da decisão sobre Edgar Aquino Duarte, o magistrado Gemaque assegurou também o caráter ontológico da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, principalmente para que não fiquem impunes. Ressaltou ainda, que ex-agentes sejam responsabilizados pelo desaparecimento forçado e eventuais crimes conexos, através da Resolução 33/173 da ONU (20 dez. 1978), a resolução que trata sobre pessoas desaparecidas definiu que os Estados devem:

a)dedicar recursos apropriados à busca de pessoas desaparecidas e à investigação rápida e imparcial dos fatos; b) assegurar que agentes policiais e de segurança e suas organizações sejam passíveis de total responsabilização (fully accountable) pelos atos realizados no exercício de suas funções e especialmente por abusos que possam ter causado o desaparecimento forçado de pessoas e outras violações a direitos humanos; c) assegurar que os direitos humanos de todas as pessoas, inclusive aquelas submetidas a qualquer forma de detenção ou aprisionamento, sejam totalmente respeitados. (SÃO PAULO, 2021a).

           

A decisão em tela, nesta tese jurídica da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e sua aplicação no direito interno, é fundamental para garantir a responsabilização de possíveis agressões contra dignidade humana, que, como já demonstrado, foi recepcionada pela constituição, reforçando o caráter programático da justiça de transição ao equiparar-se a garantias fundamentais protegidos pelo Estado Nação e seus legisladores, cabendo ao Estado Juiz julgar na defesa da prevalência dos direitos humanos.

Como este tema é recorrente em casos denunciados em outros processos transicionais, em 2020, a Comissão Interamericana publicou em sua página oficial, o Compendio de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos sobre verdad, memoria, justicia y reparación en contextos transicionales, onde encontramos o seguinte destaque sobre o tema da prescrição e destaca no parágrafo 226[3], sobre coisa julgada ‘aparente’ ou ‘fraudulenta’, a Corte entende que se surgirem fatos novos ou mesmo outras provas que permitam caracterizar fato novo, que determine os responsáveis por violações de direitos humano, e ou responsáveis por crimes contra a humanidade, o inquérito ou fase judicial pode ser reaberto, mesmo que já tenham sido absolvidos, em algum julgamento. Neste sentido, há um deslocamento da proteção do bis in idem, pela exigência da justiça, em respeito às vítimas e aos princípios da Convenção Americana.

Nesta mesma publicação da CIDH, ressalta-se nos parágrafos 227/228[4], que no caso da aplicação e interpretação da Lei da Anistia do Brasil, nos casos de coisa julgada “aparente” ou “fraudulenta”, cita-se o julgamento de 2009, da 1ª Câmara Criminal Federal que decidiu arquivar o inquérito aberto sobre o caso Vladimir Herzog. O arquivamento do referido inquérito, ordenado pela Justiça Estadual em 1993, em aplicação da Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia), manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, por afastar da justiça os supostos responsáveis ​​pela ação e deixar o crime cometido contra o jornalista Vladimir Herzog na impunidade. Nessa hipótese, o Estado não pode ser assistido no princípio do bis in idem, para descumprir suas obrigações internacionais (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2021, p. 49)[5].

Neste diapasão grifou o Ministro Flávio Dino, entre outros fundamentos jurídicos de sua sentença: “no crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia.

É neste novo entendimento que podemos estar diante da  real possibilidade de avançarmos no pilar da justiça e criminalização dos torturadores e agentes que praticaram crimes de lesa humanidade, e dessa feita, alcançaremos à justiça de transição em todas as suas dimensões, e aos familiares de desaparecidos políticos o seu ponto final.

Portanto, no direito, quando queremos comemorar um julgado histórico dizemos: “Há Juízes em Roma”, que seja assim no Brasil.


[1] Advogado e Cientista Político. Coordenador Geral do Cendhec e titular da Cátedra UNESCO/UNICAP de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Professor de Direito Constitucional.

[2] ALMEIDA, Manoel Severino Moraes de. DITADURA E TRANSIÇÃO PROGRAMÁTICA: A Tutela Multinível e a Judicialização dos Crimes da Ditadura. Rio de Janeiro: NIDH, 2024.

[3]226. Surge de la jurisprudencia del Tribunal que una sentencia pronunciada en las circunstancias indicadas produce una cosa juzgada “aparente” o “fraudulenta”. La Corte considera que si aparecen nuevos hechos o pruebas que puedan permitir la determinación de los responsables de violaciones a los derechos humanos, y más aún, de los responsables de crímenes de lesa humanidad, pueden ser reabiertas las investigaciones, incluso si existe un sentencia absolutoria en calidad de cosa juzgada, puesto que las exigencias de la justicia, los derechos de las víctimas y la letra y espíritu de la Convención Americana desplaza la protección del ne bis in idem.

[4]227. En el presente caso se cumple uno de los supuestos señalados de cosa juzgada “aparente” o “fraudulenta”. En el año 2009, la 1° Sala Federal Penal determinó el archivo de la investigación abierta sobre los hechos del presente caso, al considerar que el cierre de dicha investigación ordenado previamente por los tribunales estaduales en 1993, en aplicación de la Ley No. 6.683/79 (Ley de Amnistía) adquirió fuerza de cosa juzgada (supra párr. 127-128). 228. A juicio de la CIDH, dada su manifiesta incompatibilidad con la Convención Americana, la interpretación y aplicación de la Ley No. 6.683/79 (Ley de Amnistía) en este caso tuvo como propósito sustraer a los presuntos responsables de la acción de la justicia y dejar el crimen cometido en contra del periodista Vladimir Herzog en la impunidad. Bajo este supuesto, el Estado no puede auxiliarse en el principio de ne bis in idem, para no cumplir con sus obligaciones Internacionales (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2021, p. 49).

[5]228. A juicio de la CIDH, dada su manifiesta incompatibilidad con la Convención Americana, la interpretación y aplicación de la Ley No. 6.683/79 (Ley de Amnistía) en este caso tuvo como propósito sustraer a los presuntos responsables de la acción de la justicia y dejar el crimen cometido en contra del periodista Vladimir Herzog en la impunidad. Bajo este supuesto, el Estado no puede auxiliarse en el principio de ne bis in idem, para no cumplir con sus obligaciones Internacionales (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2021, p. 49).

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