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Em missão, movimentos sociais denunciam violação do direito à água e saneamento básico na Região Metropolitana do Recife

Percorrendo municípios da RMR, ação se debruçou em ouvir experiências e formular estratégias para incidência política

Reportagem e fotos: Maria Clara Monteiro/Cendhec

Quando abrimos a torneira, o esperado é encontrar água em abundância. Mas em Pernambuco essa realidade não alcança nem metade dos seus habitantes. No estado, apenas 42,9% dos domicílios recebem água todos os dias, segundo informações da Pnad Contínua – Características dos moradores e dos domicílios, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2023.

É nesse contexto que a comunidade do Tururu, no bairro do Janga, município de Paulista, se apresenta. Lá foi a primeira parada da Missão pelo Direito à Água e Saneamento da qual o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social participou nos dias 24 e 25 de maio. Encabeçado pela organização Habitat para a Humanidade Brasil, a iniciativa passou por territórios que sofrem com a falta de água e saneamento. 

As visitas foram realizadas por comitivas, formadas por organizações nacionais e locais, movimentos sociais e populares. A Missão também passou por Campina Grande, na Paraíba.

Cooler que José* utiliza para conservar bebidas e alimentos.

Em Pernambuco, no total, sete locais foram percorridos: comunidade do Tururu, Passarinho, Córrego do Euclides, Morro da Conceição, Ocupação 08 de Março, Comunidade da Linha e Vila Santa Luzia. Em todas, além da luta, estavam presentes as violações aos direitos humanos por parte daqueles que deveriam protegê-los. 

Na Ocupação Floresta, por exemplo, que se localiza dentro da comunidade do Tururu, conversamos com José* que explicou que o uso da geladeira não é recomendado no local por sobrecarga de energia elétrica. A solução encontrada por elas e eles foi comprar um cooler e abastecer com gelo pelo menos uma vez por dia. 

A ocupação surgiu após as grandes chuvas de 28 de maio de 2022, consideradas a maior tragédia socioambiental do Estado, que vitimou mais de 130 pessoas no Grande Recife. No total, mais de 125 mil pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas. 

Sem condições de, ao mesmo tempo, pagar aluguel e recomeçar a vida, as pessoas não tiveram outra escolha a não ser ocupar: que torna-se um direito enquanto morar, viver, comer e beber for um privilégio. 

Esses fatores estão ligados a ausência de um projeto habitacional de qualidade. Desse modo, as pessoas são empurradas a ocupar espaços inseguros e que ferem a dignidade humana. Em maio de 2022, o portal G1 revelou, segundo dados oficiais da prefeitura, que a capital pernambucana tem um déficit de 71.160 moradias. 

Na Ocupação Floresta, moradores utilizam técnicas próprias para tratar a água que chega em suas casas.

As moradoras mais atingidas são as mulheres negras e mães solos, consequência que reverbera no cenário atual do país de desamparo social, forçando a pressão popular no enfrentamento por melhorias e garantia dos direitos.

“Essa atuação coletiva fortalece, no campo dos Direitos Humanos e da luta pelo Direito à Cidade, as comunidades e sujeitos que sobrevivem há anos nos territórios afetados, achando que não tem a quem recorrer”, discorre Cristinalva Lemos, assistente social do Cendhec, que esteve presente na iniciativa. 

Líquido precioso

O acesso à água todos os dias ainda é um sonho para muitas comunidades na Região Metropolitana do Recife (RMR). Chegando nas casas durante a madrugada, as/os moradoras/es têm seus sonos roubados para armazenar o líquido que vai embora antes do dia amanhecer. Infelizmente, essa realidade não é única; a mesma situação foi relatada em vários locais.

Muitas vezes, no entanto, esse armazenamento é feito de maneira inadequada. Além de faltarem instruções sobre como essa conservação pode ser feita, o alto número de dias com torneira vazia faz com que o acúmulo de água seja maior. Com isso não é incomum observar o aparecimento de insetos e mosquitos que proliferam doenças e contaminam o que deveria ser saudável. 

Esse foi o caso de Ana*, habitante do Córrego do Euclides. Em conversa com a equipe, ela relatou que contraiu a Helicobacter pylori, também conhecida como H. pylori, após ingerir água contaminada. Emocionada, ela relatou as dores e complicações que sofreu em decorrência da bactéria, que incluíram dor intestinal, diminuição do apetite, enjoo e vômito.

Escadarias, vias e ruas são atravessadas pelo esgoto que corre livremente no Córrego do Euclides.

Mas Ana não está sozinha. Mesmo diante das subnotificações de casos, esse relato é compartilhado por muitas e muitos. A falta de água potável revela a maior tendência de concentração de toxinas e bactérias e vai desde escolas e postos de saúde sem funcionar a mal-estar em familiares. 

“Em todas as comunidades que fomos na Missão, as mulheres foram as nossas parceiras locais e que apresentaram o contexto em que vivem. Ouvimos relatos de muita angústia, indignação e luta. São pessoas que há oito anos não têm água na torneira, assim como moradores que se juntam para contratar serviço de limpeza de esgoto, como é o caso das/os que vivem no Córrego do Euclides”, relata Lorena Melo, assistente social do Cendhec.

Em decorrência, tivemos, em 2024, um recorde de número de mortos por casos de dengue no país: 1.256. Além de outras 1.857 mortes que estão em investigação, segundo dados divulgados pelo Painel de Arboviroses do Ministério da Saúde.

“Mulheres e jovens são os mais afetados com a falta de água e saneamento nas comunidades. São elas que exercem o papel de cuidados da família, inclusive os afazeres domésticos, e muitas vezes passam noites em claro para tentar conseguir um pouco de água e dar conta das demandas que se sobrepõem a ela”, aponta Cristinalva Lemos.

Fonte de vida

Situação que amarga a vida das/dos habitantes na Região Metropolitana do Recife.

Na teoria, o direito à água e ao saneamento básico está assegurado a todas e todos. Entretanto, como foi explicitado, o dia a dia de quem está nas comunidades e ocupações é bem diferente. A defesa da vida acontece com o apoio popular de quem luta para, um dia, ter um teto todo seu com todos os direitos básicos garantidos.

É nessa perspectiva que o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social atua há 35 anos. Defendendo e visando uma sociedade democrática e popular, a defesa por direitos básicos caminha lado a lado na instituição, como ressalta Lorena Melo. “Não é possível pensar em moradia digna sem acesso aos recursos básicos. As condições de vida que presenciamos, com maior ênfase a partir da Missão, foram impactantes e não podem ser naturalizadas pela sociedade, muito menos negligenciada pelo poder público”, evidencia.

Na defesa de uma sociedade justa e equânime para todas as pessoas queremos negritar o perfil e as histórias de vida das pessoas que há décadas sofrem com a escassez e precariedade do acesso a água e saneamento. Compreendendo a interseccionalidade das dimensões de gênero, raça, classe, idade e sexualidade queremos lutar nos espaços que ocupamos por direitos e políticas públicas que direcionem força política e recursos públicos para que possamos construir territórios com infraestrutura que ofereçam maior dignidade às pessoas. Para nós, enquanto organização da sociedade civil, é uma grande responsabilidade evidenciar e afirmar a luta das/os que vieram antes de nós para que juntas/os/es possamos engajar as juventudes e os que virão de que a luta continua.

Lorena Melo, assistente social do Cendhec

Após todas as visitas, o próximo passo, então, é analisar o diagnóstico para formulação de estratégias conjuntas para a incidência política, como explica Lorena Melo. “O documento trará informações e análises inéditas sobre as reais condições de vida, que em muitas situações pode levar ao adoecimento, devido a precariedade do acesso à água e ao saneamento básico. Este material pode auxiliar as comunidades a atuarem com dados precisos e recomendações amparadas nos direitos constitucionais para que possam incidir politicamente na cobrança por melhores condições de vida digna no território nas esferas municipal, estadual e federal”, certifica a assistente social. 

*Nomes fictícios que foram adotados no intuito de preservar a integridade e a dignidade das pessoas entrevistadas.

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