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“Querem nos sufocar”: Missão-Denúncia revela violações ao direito humano à moradia

Um teto. Geralmente essas duas palavras flutuam em nosso imaginário quando falamos de moradia. Mas casa é, principalmente, o que construímos debaixo desta estrutura. Para Maria Andrelina lar é a cama que compartilha com seus dois filhos, por exemplo. Vinda de Caruaru, a jovem de apenas 23 anos enfrentou dias, em especial noites, difíceis até chegar à ocupação 8 de Março, localizada em Boa Viagem. “Já dormi muito na rua. Saber que temos onde encostar a cabeça para descansar já me deixa muito feliz”, diz. “Agora, o que eu mais quero é trazer meus pais e meus outros três filhos que ficaram em Caruaru. Aqui a gente vai poder ser família”.

A ocupação onde Maria constrói sua nova história está em um terreno abandonado pela incorporadora Anbar Participações há mais de 20 anos. O espaço acumula mais de R$500 mil em dívidas relativas a impostos com o município e a União. Atualmente, 250 famílias vivem ameaçadas de despejo devido ao pedido de reintegração de posse pela construtora.

A 8 de Março foi a primeira parada da Missão-Denúncia em Defesa do Direito Humano à Moradia, ao Território e contra os despejos no Recife, RMR e Zona da Mata Sul/PE, da qual o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social participou nos dias 21 e 22 deste mês. Encabeçada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) e Campanha Nacional Despejo Zero, a iniciativa passou por Zonas Especiais de Interesse Social e comunidades que sofrem com a especulação imobiliária e ameaças de desapropriação.

As visitas são realizadas por comitivas, formadas por organizações nacionais e locais, movimentos sociais e populares. A Missão, que já passou por Manaus, Fortaleza, Porto Alegre, Belém, São Paulo, Natal, Goiânia e Rio de Janeiro, tem seu fechamento com uma audiência pública, onde são compartilhadas as impressões documentadas, além de aproximar moradoras e moradores destas localidades ao poder público. Aqui, no Recife, o encontro aconteceu na última quarta-feira, dia 23.

Em nosso estado, no total, 12 locais foram percorridos: Ocupação 8 de Março; Muribeca; Jardim Monte Verde; Ocupação Menino Miguel; Ocupação Leonardo Cisneiros; Ocupação Maria Firmina dos Reis; Vila Esperança / Cabocó; Chico Lessa; Fragoso; Conjunto de Prédios Caixões, em Olinda; Frexeiras e Fervedouro. Em todas, além da luta e o forte desejo de fincar raízes, estavam presentes as violações aos direitos humanos por parte daqueles que deveriam protegê-los.

Davi e Golias

José Adriano de Andrade, presidente da Associação de Moradores de Fervedouro, sabe o que é estar marcado para morrer. Nascido em Panelas, o camponês chegou ainda bebê no município de Jaqueira, na Mata Sul Pernambucana. Aos 15, seguiu a sina do seu pai e foi trabalhar na Usina Frei Caneca. Foram anos de labuta até que assistiram, há duas décadas, o fechamento do local. As pessoas que dali fizeram seu sustento também fizeram moradia, usaram da agricultura como meio de subsistência, firmaram laços, se fincaram no chão.

Em 2016, surgiu uma nova arrendatária para a antiga usina, ameaçando tirar todas estas histórias do local para ocupar com gado. Desde então, o campo, que era pacífico, virou zona de conflito. Hoje, habitantes dormem com medo de perder suas terras e principalmente suas vidas, diante de toda exploração. Lavouras e famílias foram atingidas por agrotóxicos, agricultores foram presos injustamente e, de acordo com os camponeses, circula uma lista de quem apresenta perigo para “os novos donos”.

“Entre 2018 e 2021, plena pandemia, a gente sofreu muito com a polícia na nossa porta, tanto a militar quanto a civil. O meu pai faleceu com 90 anos nesta comunidade, foi funcionário da usina, se aposentou, mas foi visto como ladrão. Esse foi o pagamento que ele teve”, diz Adriano, de 45 anos. “É difícil viver em uma comunidade assim. O que faz a gente viver é a força e a luta de cada um para sobreviver do local. Se nós sairmos dessas comunidades, onde nós vamos morar? Lá estão plantadas nossas raízes. O que nós sabemos é plantar. Plantar o alimento que o rico come. Mas ricos somos nós, que damos comida para eles, botamos alimento na mesa deles. Se o campo não plantar, a cidade não janta.”

A batalha contra gigantes tem acontecido, também, na Região Metropolitana do Recife. Em Vila Esperança/Cabocó, ZEIS localizada em Monteiro, o adversário é a própria prefeitura do Recife, que aprovou a derrubada de 58 casas na comunidade, na expectativa de retomar a Engenheiro Jaime Gusmão, aparato que deve ligar o bairro até o da Iputinga, na Zona Oeste. “Estão querendo esmagar a gente. Eu mesma vivo há 35 anos lá. Todas as crianças dali me chamam de vó, porque sou muito ligada a todas elas. Nunca mais vou poder ouvi-las me chamar assim?”, questiona Bernadete Miranda, moradora de 72 anos do local. Na manhã desta quinta-feira, 24, moradoras e moradores iniciaram um protesto na Avenida 17 de Agosto, em Casa Forte, Zona Norte do Recife. O fechamento da via é uma atitude desesperada para que olhem para as mais de 120 famílias que serão atingidas.

Já a 138km de Jaqueira está Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, por exemplo. De origem tupi, o nome é originário do Meru-Beca, que significa mosquito insistente ou persistente, e é isto que as moradoras e moradores do antigo conjunto habitacional têm feito por lá. O espaço está sendo sufocado por indústrias e, por isso, foi possível perceber, durante a missão e depoimentos, as diversas violações à dignidade, como crimes ambientais, com aterros e alterações nos cursos dos canais; e a falta de diálogo por parte do poder público com a população. Também foram apontadas as faltas de CRAS, Escolas, medicamentos e profissionais em postos de saúde.

“Muribeca era um lugar independente, agora perdemos até transportes públicos”, diz o diretor Executivo da ONG Somos Todos Muribeca, Marcelo Trindade. “Por causa das alterações no território, locais que nem alagavam agora alagam. Sofremos muito com as últimas chuvas.”

“Viver aqui é estar com a cabeça na guilhotina”

As chuvas as quais Marcelo se refere são as de 28 de maio de 2022, consideradas a maior tragédia socioambiental do Estado, que vitimou mais de 130 pessoas no Grande Recife. No total, mais de 125 mil pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas. A comunidade de Jardim Monte Verde, área limítrofe entre Recife e Jaboatão, foi a área mais afetada, com 20 mortes. Diversas famílias perderam suas casas soterradas, outras foram obrigadas a deixar seus espaços por causa do risco de desabamento.

Estas vidas perdidas já conviviam com um alvo bem delimitado em seus corpos: eram pessoas negras, pobres e periféricas. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Recife é a cidade mais vulnerável do Brasil à elevação do nível médio dos oceanos, e a 16° do mundo. Em setembro de 2022, o município ocupava o terceiro lugar no ranking de capitais desiguais no país. No estudo Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental, feito pelo Instituto Pólis, a capital pernambucana apresenta 59% de pessoas negras em locais que estão sujeitos à inundação; e pode chegar a 68% nos lugares de deslizamento. Temos acesso a estes dados, mas o que de fato tem sido feito por estas famílias?

Moradores se viram desamparados. Mesmo um ano e três meses depois do terror, ainda não receberam uma parcela do auxílio aluguel prometido para as pessoas atingidas. Valor este que está tabelado em apenas R$ 300 reais. Foram inúmeros os desfalques financeiros, mas, o que se apresenta mais latente é a dor que não finda.

Jennifer Britto, que compõe a comissão por moradia em Jardim Monte Verde não consegue desligar o estado de alerta. “Viver aqui é estar com a cabeça na guilhotina. Quando começa a chover sou a primeira a mandar mensagem no grupo. Eu fui uma das que passou o dia 28 de maio tirando pessoas que ama da lama. Não quero vivenciar isso novamente e não quero que ninguém passe por isso”, diz. “Minha casa foi interditada por risco de desabamento, mas uma creche que fica ao lado dela continua funcionando e recebendo crianças. Quando chove, a mesma escola funciona de abrigo. Como isso faz sentido? Temos medo que outra tragédia possa acontecer. Esta rua era uma alegria, agora é escuridão. Nós fomos esquecidos”

Leia mais: “A sensação é que somos invisíveis”: como estão as vítimas da última tragédia ambiental no Recife

Para quem denunciar, se quem deveria proteger é quem viola?

Em maio de 2022, o portal G1 revelou, segundo dados oficiais da prefeitura, que a capital pernambucana tem um déficit de 71.160 moradias. Número expressivo, mas possível de ser contornado com políticas públicas para habitação. Em 2018, o estudo “Moradia no Centro: um caminho possível para combater o problema do déficit habitacional nas cidades”, realizado pela Habitat para a Humanidade Brasil, em parceria com o programa da FASE em Pernambuco, o coletivo A Cidade Somos Nós e o Coletivo Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) identificou que, das 112 edificações levantadas no Centro do Recife, 42 estavam totalmente desocupadas ou com menos da metade de sua área ocupada. Isso quer dizer que 37,5% dos imóveis analisados estavam ociosos.

Em relação ao estado de conservação, em sua grande maioria, as estruturas foram classificadas como Boas (74) e Regulares (33), com apenas 4 apresentando conservação Ruim e 1 sem opção assinalada. De acordo com o levantamento, naqueles 42 imóveis, seria possível construir 106 unidades habitacionais, para isso, seria necessário um investimento estimado de R$252.781.694,85.

De acordo com dados recolhidos pelas organizações naquele ano, sobre dívidas de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) na RPA01, a inadimplência no pagamento do imposto em imóveis chegava a R$346 milhões – R$94 milhões a mais do que o necessário para converter os 42 prédios em habitação.

Mesmo com a clara necessidade de habitar, e condições para isso, aquelas e aqueles que ocupam são vistos com animosidade. As ocupações Menino Miguel, Leonardo Cisneiros e Maria Firmino, localizadas na área central da capital, alegam sofrer com diversos preconceitos, perseguições policiais e até torturas.

Na Leonardo Cisneiros, a vista privilegiada da cidade contrasta com as violências que sofrem da mesma. “Eles entram aqui com alicates e abrem nossas casas, reviram tudo. Dizem que procuram droga, dinheiro, nunca tive isso aqui. Também já tentaram afogar um menino na caixa d’água”, diz uma moradora do local. “Um policial já bateu em mim, mesmo eu estando grávida, e já jogaram um pneu no meu filho, que é de colo”, afirma outra.

Para quem denunciar, se quem deveria proteger é quem viola? “Tudo que acontece na cidade pensam que foi a gente. Acham que todos que vivem em ocupação são bandidos. Outro dia pegaram o meu filho, que estava mexendo no celular aqui na frente e disseram que ele tinha roubado o aparelho. Isso é mentira, ele era novo, tínhamos a nota fiscal e tudo”, fala uma integrante da Maria Firmino.

Daqui para frente

O Ministério Público de Pernambuco, representado pelo coordenador do CAO Cidadania, o Promotor de Justiça Fabiano Pessoa e pelo coordenador do Núcleo de Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (DHANA) Josué de Castro, o Promotor de Justiça Westei Conde y Martin Júnior, participou da audiência pública e apresentou possíveis encaminhamentos para os próximos meses. Ambos se colocaram à disposição para servir de ponte entre população e poder público. “Vejo como urgência a necessidade do diálogo com a polícia, marcarmos reunião com as lideranças e comunidades, por exemplo”, disse Westei. O Governo do Estado de Pernambuco e a Prefeitura do Recife foram convidados a participar, mas não enviaram representação.

Os depoimentos e impressões serão redigidos, sistematizados e culminarão no lançamento do Relatório-Denúncia nacional das violações. O documento reunirá o resultado de todas as missões e será entregue a autoridades dos poderes executivo, legislativo e judiciário em nível nacional, além da relatoria da ONU pelo direito à moradia. “Faremos duas listas de recomendação. Uma agora, porque é urgente. As questões das creches, postos de saúde e violência policial não podem esperar. A outra será mais técnica e completa”, diz presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o pernambucano André Carneiro Leão.

Para a assistente social e integrante do Programa Direito à Cidade do Cendhec, Cristinalva Lemos, a Missão-Denúncia começa, de fato, agora. “Terminou o momento de escuta, mas a partir dos documentos produzidos estaremos lutando para que estas vozes ecoem por todo Brasil e até internacionalmente”.

Fotos: Ricardo Labastier

Texto: Mariana Moraes

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