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Dia Mundial do Habitat: Cidades e Comunidades Sustentáveis para 2030?

O ano de 2020, que entra para a história dada a pandemia do Covid-19 e por expor – no Brasil e no mundo – as entranhas das disparidades estruturais, encaminha-se para o final. São muitas as incertezas capitaneadas por um temor: alcançarmos uma realidade ainda mais desigual. Entramos agora no “Outubro Urbano”, agenda da ONU-Habitat que se inicia hoje, Dia Mundial do Habitat, com o tema “Habitação para todas e todos: um futuro urbano melhor”. A iniciativa encerra no Dia Mundial das Cidades (31 de outubro), e traz “Valorizando nossas comunidades e cidades” como título.

A iniciativa acontece em meio a uma realidade em que a crise sanitária atinge mais de 1,430 cidades em 210 países, sendo 95% dos casos nos centros urbanos. O documento que embasa a ação afirma que o impacto da crise será mais devastador nas áreas pobres e populosas dos centros urbanos, em especial para as favelas e assentamentos informais, consequência de um Século XXI em que uma maioria precarizada conhece do capital globalizado apenas seus efeitos perniciosos: são 2,4 bilhões de pessoas com limitações de acesso à água e saneamento e 1 bilhão de pessoas reduzidas à vida em assentamentos adensados e de conformação inadequada (ONU-HABITAT, 2020). Ainda de acordo com a organização, são das comunidades e territórios dos assentamentos de onde virá a maior parcela da população economicamente ativa no espaço urbano pensado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para o Ano de 2030. A partir da atuação do Cendhec na promoção, defesa e garantia do Direito à Cidade foi possível identificar algo que já era ressonante antes da Pandemia: a Agenda 2030, em seu Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11 – construção de cidades resilientes e sustentáveis -, encontraria diversos percalços. O fator principal seria a necessidade de aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, além da capacidade para o planejamento e a gestão participativa, integrada e sustentável dos assentamentos humanos. No Brasil: A crise de insegurança da posse manifesta-se sob muitas formas e em muitos contextos. As remoções forçadas são seu sinal mais visível e chocante (…) os impactos negativos das remoções são enormes: aprofundam a pobreza e destroem comunidades, deixando milhões de pessoas em situação extremamente vulnerável (ROLNIK, p. 149, 2015).

Trata-se fundamentalmente de uma questão econômica. Leis, instituições e processos de tomada de decisão quanto a temática acabam sempre atravessados pelas estruturas de poder existentes na sociedade. Os espaços institucionais de políticas de gestão do solo e planejamento urbano revelam o cerne da disputa inclusão/exclusão no território das cidades. Em tempos de financeirização do capital, sobrepondo-se a extração da renda sob o capital produtivo, as terras urbanas e rurais convertem-se em ativos cada vez mais disputados. A liberalização do mercado se estende também para terra com consequências especialmente drásticas para economias emergentes onde as comunidades mais pobres, despidas da segurança da posse, encontram-se sobre a constante ameaça da tomada forçada de seus territórios. (ROLNIK, 2015).

No Brasil, a chamada Agenda da Reforma Urbana pode hoje ser revisitada em três períodos cruciais:

  • a) final dos anos 1970 até 1988, com a inclusão por emenda popular do Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal de 1988;
  • b) 1988 até 2003, com a constitucionalização do Direito à Moradia (ano 2000) e Aprovação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001);
  • c) desde 2003, Criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades (anos 2003/2004); Lançamento do PAC (2007); Lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida (2009); Aprovação de reformas legais (anos 2003/2015).

Hoje, com pouco mais de 30 anos, a Constituição da República vive provações que guardam simetria com as contradições que a gestaram. Dentre avanços e retrocessos, o cenário é de desafio para o Direito Urbanístico/Direito à Cidade no Brasil. De Lefebre a Harvey, da Plataforma da Reforma Urbana ao Estatuto da Cidade, os movimentos sociais e a luta proletária nos legou o “direito à cidades sustentáveis, compreendendo o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (art. 2º, I da Lei 10.257 de 2001).

A partir de 2015, no entanto, a exemplo dos demais direitos sociais, também o Direito à Cidade e a Agenda de Reforma Urbana passaram a sentir a desconstrução durante modelo de gestão franqueado pelo Golpe. Antes mesmo do governo Temer, as pressões políticas que recaiam sobre a presidenta Dilma Rousseff a fazem aprovar o controverso Estatuto da Metrópole (Lei 13.089 de 2015) e já sob a caneta do mesmo é aprovada a Lei 13.465 que, dentre outros descaminhos, culmina no desmonte do marco progressista da Regularização Fundiária. Se era de percalços o caminho das cidades sustentáveis projetado pela agenda 2030 até os idos relatados, acentuada a ‘desdemocratização’ pelo Governo Bolsonaro, o ano de 2020 e seu cenário pandêmico demarcam a necessidade de uma reflexão muito mais basilar para o destino dos assentamentos urbanos e das cidades: poder popular ou barbárie. O índice de letalidade da Covid-19 é, até o momento, 5 vezes maior para a população negra, consequência das condições socioeconômicas, de habitação e de acesso à infraestrutura precárias que ampliam a vulnerabilidade socioespacial de contaminação (IPEA, 2020). As mais de 140 mil mortes decorrentes do coronavírus marcam as desigualdades históricas que produziram as cidades brasileiras. A necropolítica (MBEMBE, 2016), entendida como o poder sobre a vida e a morte dos corpos negros, parece ter encontrado comprovação cabalística na condução política do executivo federal. Pensar cidades sustentáveis, com “Habitação para todas e todos”, com planejamento participativo, função social da propriedade, justiça e igualdade como elementos essenciais, é também afirmar que não é possível pensar o espaço urbano separado de um pensamento sobre os sujeitos. Sobre as pessoas que o habitam. E no fato de que as pessoas têm cor, condição econômica, locais de moradia e gênero.

É nessa perspectiva que o Cendhec trabalha a mais de 30 anos, consciente de que a luta pela moradia é de classes, com cor, gênero e muitas chagas coloniais. Na batalha pela habitação, temos um conflito inerente ao sistema capitalista: o direito à dignidade humana versus o direito à propriedade. É necessário compreender e escancarar para o povo brasileiro que o estado de vulnerabilidade advém de medidas neoliberais, como facilitações fundiárias para os detentores do poder econômico, além de frisar que a perpetuação desse sistema é o que gera a barbárie.

De acordo com o relatório na ONU Habitat (Escritório das Nações Unidas para Habitação e Moradia) de outubro de 2017, cerca de 1,6 bilhão de pessoas vivem em moradias inadequadas, dessas, 1 bilhão em favelas e assentamentos urbanos informais (ocupações). Ou seja, esses dados informam que pelo menos 22% da população mundial vive sob o medo da insegurança jurídica da moradia por não ter renda para garantir-lhe um título de propriedade (ANTUNES, 2020). O coronavírus esfacela as outrora abertas veias da América Latina. “Fique em casa”; “lave as mãos”; “use álcool em gel”. Mas com que casa, com que água e com que dinheiro? A realidade dos adensamentos é a da coabitação, da falta de água e de saneamento. Trata-se da hipocrisia autorizada, mais uma vez neste país, pelo autoritarismo. O Poder Popular é o recurso elementar das cidades e apenas através dele será possível, de fato, a consecução dos objetivos da ODS 11 da Agenda 2030 da Organização Mundial das Nações Unidas – ONU, dificilmente, implementada no Brasil, nos próximos 10 (dez) anos. Sempre se tratou da luta por cidades produzidas democraticamente. “Todo poder emana do povo que o exerce (…) diretamente” (BRASIL, 1988). Isso ou barbárie.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988;

Mbembe, Achile. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n.32, dezembro 2016;

Nota Técnica IPEA nº 15. Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – DIRUR. APONTAMENTOS SOBRE A DIMENSÃO TERRITORIAL DA PANDEMIA DA COVID-19 E OS FATORES QUE CONTRIBUEM PARA AUMENTAR A VULNERABILIDADE SOCIOESPACIAL NAS UNIDADES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE ÁREAS METROPOLITANAS BRASILEIRAS. Abril de 2020;

Ricalde, Mario do Carmo. Regularização Fundiária Rural e Urbana: Impactos da Lei 13.465/2017. 2ª Ed. Campo Grande: Contemplar, 2019;

Rolnik, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2015;

O Plano de Resposta da ONU-HABITAT ao Covid-19, 2020;

Antunes, Gilvandro. A moradia popular entre o direito à dignidade humana e o direito à propriedade privada: uma análise da legislação nacional, internacional, do povo e do Estado. Revista Movimento. Janeiro de 2020. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2020/01/a-moradia-popular-entre-o-direito-a-dignidade-humana-e-o-direito-a-propriedade-privada-uma-analise-da-legislacao-nacional-internacional-do-povo-e-do-estado/. Acesso em: 05 out. 2020

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