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Direito à Cidade: As Diferenças e as Vivências Marcadas pelas Desigualdades de Gênero

O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social – Cendhec celebrou durante esta semana os 19 anos do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001. Para nós, em julho de 2020, comemorar o Estatuto não está apartado da consciência do momento do país onde a pobreza extrema ameaça atingir níveis desumanos com as cidades sendo palco de exclusões já históricas agravadas pela pandemia que nos atravessa.

Se comemorar o Estatuto é trazer para o primeiro plano um pensamento sobre a cidade que compreende planejamento participativo, função social da propriedade, justiça e igualdade como elementos essenciais, é também afirmar que não é possível pensar o espaço urbano separado de um pensamento sobre os sujeitos, as pessoas, que o habitam. E no fato de que as pessoas têm cor, condição econômica, locais de moradia, gênero.

Assim, perguntamos: quem pode ocupar a cidade e de que forma? E de maneira mais específica: qual a condição das mulheres no espaço urbano – sejam elas jovens, meninas, idosas? E se forem mulheres trans, lésbicas, pobres, negras?

Como ponto de partida para pensar sobre as perguntas, a fala de Dona Miriam Barbosa de Freitas, moradora de Nova Descoberta, comunidade da zona norte do Recife, é muito significativa. Ao comentar sobre os direitos que o Estatuto da Cidade visa garantir ela nos diz: “se a gente tem esse direito (à cidade) ele foi violado.” Partilhando sua reflexão do lugar de mulher, 59 anos, moradora de território popular de um centro urbano como o Recife – cujo déficit habitacional é de aproximadamente 300.000 pessoas [1], sua fala direta e objetiva nos leva a pensar que, embora o Estatuto seja um instrumento importante para implementação de políticas públicas voltadas à moradia, garantia e promoção de direitos das populações mais vulnerabilizadas, ainda há muitos desafios na conquista de uma cidade justa para todos e todas.

Considerando que a relação e a condição das mulheres nas cidades dizem da estrutural desigualdade de gênero que as afetam em muitas dimensões, não há uma questão ou uma via apenas para dialogar sobre mulheres e cidades – são muitas, diversas e complexas as questões e os fatores.

Entretanto, no momento de demarcar o Estatuto na sua relevância para pensar cidades menos excludentes, gostaríamos de trazer dois aspectos da conformação dos espaços urbanos que contribuem para perpetuar desigualdades de gênero e, consequentemente, violam direitos e impedem o desenvolvimento pleno das mulheres – sobretudo aquelas das classes populares e as mulheres negras:

As condições de moradia, com ênfase no saneamento básico;

A questão da mobilidade (circulação pelo espaço público), observando a inferiorização das mulheres e a objetificação dos seus corpos.

Não é simples, nem seguro, para meninas (adolescentes), jovens e mulheres exercerem o direito de ir e vir numa sociedade machista. Vistas como inferiores, logo, como corpos disponíveis, é no espaço público urbano que muitas violências de gênero são cometidas – desde a violência simbólica causada pelo próprio medo de circular e ser, de alguma forma, agredida, ao assédio (presente e recorrente em transportes públicos, por exemplo) e a violência sexual, como o estupro. Do mesmo modo, para as mulheres que não se submetem à ideia de norma, não se sujeitam e não correspondem aos papéis sociais de gênero que lhes foi estabelecido, o espaço público é cenário de violência como punição e disciplinamento, caso dos estupros corretivos (de que são vítimas mulheres lésbicas) e coletivos. Num país racista como o nosso, estas são violências que atingem de forma ainda mais emblemática as mulheres negras e pobres. Conforme registra o Mapa da Violência, 2018: 54,0% mulheres negras foram vítimas de violência sexual em 2016 no Brasil, enquanto 34,3% eram brancas [2].

Noutra via de reflexão sobre gênero e direito à cidade, observamos que se o saneamento acessível a todos/as é essencial ao desenvolvimento de qualquer sociedade, no Brasil, onde é direito garantido na Constituição, não é assegurado a mais da metade da população. Estamos falando do acesso à água potável e tratamento de esgoto, mas também: de limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais. A não garantia ao saneamento, ou garantia precária, impacta negativamente, de diversas formas, na vida de todos/as, mas, sobretudo na saúde. É um ponto extremamente delicado, portanto, da vida nas cidades.

Na vida das mulheres, a falta d’água aumenta consideravelmente o trabalho doméstico, quer em lares monoparentais, assumidos por mulheres, quer nas famílias conformadas no modelo tradicional. Em seu artigo (In) Justiças Territoriais e Vivências interseccionais no Espaço Sócio-Urbano, [3] a militante feminista e educadora do SOS Corpo, Mércia Alves, ao explorar essa questão menciona o Relatório – Nós e as Desigualdades de Oxfam/Datafolha, 2019: as mulheres gastam 18 horas com o trabalho doméstico, enquanto os homens 10 horas[4]. Historicamente responsáveis pelas tarefas cotidianas de cuidado (casa, idosos, crianças), nos casos de adoecimentos, comuns em situações de saneamento precário, prioritariamente sobre as mulheres recai a responsabilidade de cuidar. O tempo que destinam a essas frentes de trabalho reprodutivo, fruto da desigual divisão sexual do trabalho, retira das mulheres possibilidade de investimento pessoal e acesso a outros direitos, como a educação. O fato as fixa numa condição de pouca autonomia financeira e desenvolvimento pessoal-profissional.

Sabendo da urgência em universalizar acesso a saneamento, ponderamos sobre a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4162/2019) sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em 15 de julho de 2020, dadas as possibilidades de aproximação do capital privado na operacionalização do serviço, o que implica tratar água como mercadoria, e o distanciamento das premissas de bem comum e direito.

Assim, nos 19 anos do Estatuto da Cidade, pensá-la sob a ótica de enfrentamento às desigualdades de gênero significa atuar para enfrentar a cultura machista e patriarcal e entender o quanto gera desequilíbrio em função dos privilégios de gênero – somados aos de classe e raça. São cidades amparadas por modelos excludentes, marcadas pelo conservadorismo brasileiro, que perpetuam as desigualdades e as discriminações de gênero que as sustentam.

A cidade que para muitos/as significa histórias, construções coletivas, afeto, deslocamento, sentimentos, trajetórias, vidas… É a mesma na qual não são priorizados igualitariamente espaços (assentamentos populares, favelas, comunidades tradicionais) e sujeitos – no seu direito de ir e vir, na sua orientação sexual, na sua etnia, raça e identidades de gênero.

As mulheres, que na história brasileira sempre ocuparam trincheiras na luta por direitos, pela própria existência e pela transformação das cidades, necessitam exercer, em maior volume, papel de representatividade feminina na tomada de decisões de políticas públicas. Essa realidade precisa ser concretizada em um país que mata mulheres todos os dias. Exercer o poder popular e exigir espaço político nas tomadas de decisão é nosso compromisso de luta.

[1]https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2019/09/23/deficit-habitacional-no-recife-chega-a-71-mil-moradias-176663

[2].https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf

[3] Mulheres e Cidades: (In) Justiças Territoriais e vivências interseccionais no espaço sócio-urbano. Mércia Alves // disponível para baixar em: https://soscorpo.org/?p=8360

[4]]https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2019/

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